“A estratégia de pedir habeas corpus já não emplaca”, diz delegado que iniciou Lava Jato
Responsável pelo início da Operação Lava Jato, o delegado da Polícia Federal Márcio Anselmo, de 38 anos, está animado. Com a robustez das provas colhidas em quase dois anos de investigação, ele acredita que os advogados dos acusados precisaram se adequar ao que ele chama de “uma nova fase”, em que não basta só buscar vícios no processo e entrar com pedidos de habeas corpus. “É preciso enfrentar o mérito das acusações”, diz Anselmo. O delegado, ex-fiscal de tributos e doutor em Direito Penal, está satisfeito com o posicionamento dos Tribunais Superiores. Para ele, a Lava Jato vem sendo referendada pelas decisões das Cortes, o que dá credibilidade à investigação. Anselmo lamenta, porém, a paralisia dessas mesmas Cortes quanto às investigações feitas na Operação Faktor, conhecida como Boi Barrica, que apurou crimes financeiros da família do ex-senador José Sarney, do PMDB do Maranhão. “Se a Faktor seguisse um curso normal, talvez a Lava Jato nem tivesse existido, porque lá já havia participação na Petrobras.”
ÉPOCA – Com dois anos de Lava Jato, como os presos nas operações se comportam quando os agentes chegam?
Márcio Anselmo – Houve uma busca em que a mulher do réu perguntou se a prisão “era aquela de cinco dias ou para sempre”. Até a mulher do alvo já havia discutido o tipo de prisão do marido. Em uma outra fase, uma pessoa ficou sabendo da operação e logo começou a ligar para investigados amigos e ver se estava tudo bem. De repente, ela própria foi surpreendida com a Polícia Federal na porta. Os advogados estão em uma nova fase. Eles precisam enfrentar o mérito dos processos penais. Tribunais Superiores têm mantido as decisões da Lava Jato. Hoje, é mais fácil ingressar com pedidos de quebra de sigilo de e-mail ou monitoramento telemático. Procuradores e juízes dominam melhor as regras, e isso acaba eliminando questionamentos formais. A estratégia de pedir habeas corpus já não emplaca tão facilmente nos Tribunais Superiores.
ÉPOCA – Houve um ponto de inflexão da Lava Jato em que se percebeu que o esquema seria desmantelado?
Anselmo – O primeiro foi o surgimento do doleiro Alberto Youssef, antes da deflagração da operação. Depois, houve a revisão da decisão do ministro (do Supremo) Teori Zavascki, quando ele soltou o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa e voltou atrás. Aquilo foi uma final de Copa do Mundo para nós. Ou quando o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, se apresentou como advogado do Youssef. Claramente, era um sinal de que havia gente por trás daquilo. A fase das empreiteiras foi o marco na primeira instância. No Supremo, a prisão do senador (Delcídio do Amaral, do PT) deu a certeza de que as coisas vão continuar no rumo. Felizmente, desde o mensalão as coisas estão bem diferentes.
ÉPOCA – O senhor imaginava ver empreiteiros e políticos na carceragem?
Anselmo – Não. E não é desejável ou bonito. São pessoas responsáveis por milhares de empregos. Mas o remédio amargo foi necessário. Com os políticos, a situação é pior, porque eles são eleitos para representar o povo. Há pessoas investigadas ou denunciadas que estão há mais de 20 anos envolvidas em casos de corrupção e continuam sendo eleitas. Talvez a reforma política seja o maior recado de urgência nisso tudo.
ÉPOCA – Há métodos ou recursos de corrupção no caso da Petrobras antes desconhecidos da PF?
Anselmo – Esse tipo de criminalidade organizada e institucionalizada é especializado. A partir do momento em que se identifica um modo de atuação, eles passam a usar outro. O monitoramento de Blackberry era tido como inviável e era justamente o que usavam. Na Lava Jato, eles aproveitaram uma brecha na regulação de contratos de câmbio de importação e remeteram milhões. É a lógica do criminoso encontrar essas falhas. Nós tentamos limitar ou antever essas brechas. Quem pratica crime financeiro certamente pensa agora em um mecanismo para substituir a contratação fraudulenta. Hoje, nossa maior dificuldade é a utilização de moeda virtual.
ÉPOCA – O senhor pesquisou cooperação jurídica internacional em seu mestrado. Em que medida a Lava Jato se beneficiou desses tratados?
Anselmo – Cooperação internacional é um dos grandes pilares da Lava Jato. O delegado da Polícia Federal eventualmente precisa de buscas no exterior, e elas são mais difíceis de implementar em tempo e com gasto razoável. Mas há alguns mecanismos, como equipes de investigação conjunta entre países, que quase não são usados no Brasil. A tendência é melhorar. Nenhum país quer ser visto como paraíso fiscal perante a comunidade internacional.
ÉPOCA – Há uma frase atribuída ao ministro Teori Zavascki: “A Lava Jato mira na galinha e acerta todo o galinheiro”.
Anselmo – A operação vem num crescente. Saímos de operadores financeiros e, seguindo a regra básica da investigação de crimes financeiros, de seguir o caminho do dinheiro, atingimos estruturas mais avançadas da cadeia de comando de organizações criminosas. Como tivemos, desde o início, um lastro probatório muito forte, a cada fase isso é reforçado. Esse foi um diferencial da Lava Jato: deflagrar uma fase ostensiva, fazer uma triagem rápida e partir para uma nova fase, evitando que provas fossem destruídas.
ÉPOCA – Quais foram os “pulos do gato” da investigação?
Anselmo – Logo na primeira fase tivemos pessoas que, ao perceber a quantidade de provas arrecadadas, decidiram confessar a maioria dos fatos. A colaboração premiada veio a reforçar isso. Vemos aqui uma quantidade de material probatório muito grande. É difícil atacar o mérito nesses casos. Outro foi ter encontrado o pagamento da Land Rover (do Youssef para Paulo Roberto Costa), que levou a investigação para a Petrobras. Só cheguei ao Paulo Roberto quando pesquisei quem ele era pelo CPF da nota.
ÉPOCA – Que novidades a Lava Jato traz em termos de perícias e técnicas de investigação e análise?
Anselmo – Algumas metodologias de exame pericial e exames de obras de arte não existiam na Polícia Federal. Não tínhamos prática de apreender obras de arte e agora temos mais de 400 apreendidas. A Lava Jato vai deixar um legado na PF nesse tipo de atividade. Temos passado por um período de grande redução orçamentária. Cada celular novo precisa de um novo programa para extrair dados. Mas o maior material é o capital humano. Tivemos sorte de contar com uma equipe excelente.
ÉPOCA – A Lava Jato teria prosperado fora do Paraná?
Anselmo – Saí de Brasília depois do caso do Maranhão (na Operação Faktor) extremamente desmotivado com o trabalho. Até hoje, ele está parado por uma decisão do Superior Tribunal de Justiça. No Paraná, tivemos sorte de ter delegados com experiência de crime financeiro para conduzir uma investigação dessa complexidade. Existe um grupo de procuradores da República que já tinha trabalhado junto lá atrás. E o juiz (Sergio Moro) com Vara especializada e capacidade técnica indiscutível fez com que a Lava Jato se desenvolvesse bem. Lembro-me de quando falei com um outro juiz e, de cara, ele respondeu que não decretava prisão, porque dava muito trabalho para a Vara.
ÉPOCA – O senhor se sentiu ameaçado por investigados ou pelo governo em algum momento?
Anselmo – Há um nível muito grande de ataques pessoais. Quem atua em uma investigação dessa não tem outro caminho a não ser em frente. O trabalho é totalmente controlado, desde a corregedoria interna até a sociedade. Não é um caso passível de ser conduzido de acordo com a vontade do investigador para o lado X ou Y. É um trabalho que desagrada a muita gente, atinge interesses econômicos e políticos. Faz parte do jogo saber lidar com isso. Na falta de defesa do mérito, alguns partiram para desqualificar investigadores e o juiz. Não foi a primeira vez nem vai ser a última.
ÉPOCA – A Operação Faktor foi prejudicada por um vazamento antes da deflagração. O que o episódio ensinou ao senhor para casos de grande impacto político?
Anselmo – Não fomos prejudicados só por vazamento. Havia toda uma estrutura de poder. Naquela época, muitas técnicas eram novidade para os juízes. Se a Faktor tivesse um curso normal, talvez a Lava Jato nem houvesse existido, porque lá já havia participação na Petrobras. Um dos investigados era conselheiro da estatal, tinha empreiteiras.
ÉPOCA – O que o senhor acha de o agente Newton Ishii ter se tornado uma celebridade, um símbolo do combate à corrupção?
Anselmo – Sempre primamos pela impessoalidade. Investigação não é propriedade isolada minha ou de qualquer pessoa. Mesmo tendo sido presidente da investigação originária, não sou dono disso tudo. É um trabalho em equipe. Vemos com preocupação esse tipo de exposição.
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