A investigação criminal e a polícia judiciária na constituição federal
O presente artigo busca analisar os aspectos da Investigação Criminal inseridos na Constituição Federal e criticar o tratamento da matéria no âmbito do Poder Executivo, bem como tecer considerações acerca da Segurança Pública como direito e garantia individual e sua repercussão na legislação infraconstitucional,bem como do devido processo legal constitucional na atividade processual preliminar de investigação criminal, por se tratarem de temas ainda pouco explorados pela doutrina dominante.
A Constituição de 1988 inseriu a Segurança pública em seu artigo 5º caput definindo-a como direito e garantia fundamental do cidadão cabendo à legislação infraconstitucional densificá-lo e operacionalizá-lo para que tenha concretude na vida dos cidadãos.
Considerando o conceito complexo de Segurança Pública podemos elencar instituições que participam ativamente de sua concretização, algumas diretamente e outras indiretamente, mas sem menos importância. Assim listamos a Polícia Judiciária, o Ministério Público e o Poder Judiciário , as polícias militares estaduais, guarda municipal e o Poder Legislativo na produção de leis adequadas a realidade criminal brasileira, entre outros.
Em se tratando da Polícia Judiciária verificamos que a Constituição elencou sua atribuição no artigo 144, sob o título V – Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas – tratando a investigação criminal não como participante ativa das Funções Essenciais à Justiça ,como seria de Direito, e sim de algo assemelhado aos estados de exceção, reconhecendo alguma similaridade entre investigação e outras instituições com outras finalidades, notadamente militares.
Soma-se a isso a ausência total de previsão de garantias e responsabilidades constitucionais para a atividade processual de investigação e para as instituições que dela cuidam, como se não participassem ativamente de todo o sistema criminal processual penal.
Ao nos perguntamos as razões do constituinte originário em tal tratamento constitucional verificamos que na época havia muita reserva em face da atuação da Polícia Judiciária talvez pelo fato da mesma ter sido utilizada como instrumento do Poder Executivo da época, não só como instrumento de investigação, mas também como instrumento de controle social.
Vemos nesta ótica que o constituinte originário foi muito feliz na estruturação do Poder Judiciário e do Ministério Público que para terem maior proteção praticamente tiveram suas leis orgânicas inseridas na Constituição, bem como mais recentemente as Defensorias Públicas, e verifica-se que a sociedade já colhe os frutos deste especial e devido tratamento.
Já se passaram 24 anos daquela época e a investigação criminal precisa ser repensada, agora já com o país tendo uma maturidade democrática sedimentada.
Assim ,no panorama constitucional atual, verificamos que o Poder Executivo Estadual e Federal tem atribuição administrativa absoluta na organização das Polícias Judiciárias e na alocação de recursos públicos para esta atividade processual preliminar. Podemos dizer que administrativamente os Governadores dos Estados possuem o controle da investigação criminal na medida em que alocam livremente servidores e recursos por atos administrativos discricionários sem a necessidade legal de motivar de forma vinculada suas decisões, visto que a Constituição Federal foi omissa quanto aos limites desta influência.
A politização de uma atividade eminentemente jurídica precisa ser reestudada á luz das garantias individuais, notadamente ao direito a liberdade no qual se extrai ser investigado por órgãos competentes sob regras prévias disciplinadas em lei. A investigação criminal eficiente é mola motriz para a concretização deste direito e precisamos debater se sua organização atende aos reclames do processo penal do ano do século XXI.
Não se pode mais tolerar que a investigação e o Inquérito Policial possam servir e se direcionar a interesses políticos do Governante eleito. Não se pode tolerar que o Poder Executivo não repasse recursos e não estruture convenientemente suas Polícias Judiciárias para que cumpram sua relevante função constitucional, não se pode mais tolerar que as investigações possam estar sujeitas a manobras políticas através da transferência livre e imotivada de servidores empenhados em determinadas investigações e na extinção e realocação livre de unidades de Polícia Judiciária, sem qualquer controle constitucional externo.
Em alguns Estados da Federação , Chefes do Poder Executivo subordinaram a Polícia Judiciária a uma Secretaria de Estado. Com isso um Secretário de Estado , de livre nomeação e exoneração, que não precisa ser bacharel em direito, tem ascendência administrativa sobre a estrutura da investigação em seu Estado. Teoricamente nada impede ao Secretário de Estado criar ou subordinar uma Delegacia de Polícia Judiciária diretamente ao seu gabinete; nada impede ao Secretário concentrar as interceptações telefônicas do Estado ao seu gabinete entre outros exemplos. Estas possibilidades, em que pese sua frontal inconstitucionalidade e ilegalidade em face do Código de Processo Penal e da lei 9296/96, abrem um perigoso caminho para que agentes políticos tenham acesso a dados relevantes e confidenciais dos Inquéritos que somente deveriam ter acesso Delegados de Carreira , Promotores de Justiça, Juízes de Direito, desde que diretamente vinculados aos autos da investigação. Tais distorções processuais precisam ser repensadas á luz da CRFB/88 e corrigidas.
Vejamos o que diz o ilustre Procurador Geral da República Roberto Gurgel acerca do tema em matéria publicada no site do jornal O Globo em 11/03/2013:
“O procurador-geral afirmou, ainda, que o Ministério Público é um órgão mais isento que a Polícia Federal para conduzir investigações, por não estar vinculado a nenhum dos Três Poderes. A Polícia Federal é um órgão submetido ao Executivo.
— É da natureza do Ministério Público a atuação independente, a atuação sem estar subordinada a qualquer dos poderes do Estado, o que evidentemente não acontece com a polícia. A polícia é uma estrutura colocada no Executivo e submetida hierarquicamente às autoridades do Poder Executivo. Muitas vezes, ou o Ministério Público conduzirá uma investigação, ou a investigação não acontecerá, ou não acontecerá de uma forma isenta — afirmou.”
Verifica-se claramente que na opinião deste jurista a solução do problema e da incrementação da investigação criminal no país é atribuí-la ao Ministério Público, por ser pela Constituição orgão que possui garantias constitucionais que o tornam “isento”’.
A nosso ver não se corrige uma distorção constitucional criando-se outra. Atribuir ao Ministério Público atribuição para presidir investigações criminais e retirar-lhe toda a possibilidade de fiscalização. Tal conferiria ao orgão um poder absoluto e imune de toda e qualquer fiscalização na presidência da investigação criminal, já que pela própria Constituiçao cabe ao Ministério Publico a atribuição de fiscalizar os atos de Polícia Judiciária e requisitar diligências, em suma de acompanhar de perto a investigação realizada pela Polícia Judiciária.
Tendo o próprio Ministério Público o poder de investigar por si só, o direito a ampla defesa, que é exercida também na fase processual da investigação criminal, ficaria seriamente abalado. Como explicar que um órgão que é parte no Processo Penal possa investigar para que ele mesmo inicie a ação penal? Como ficaria o direito à ampla defesa com esta abissal diferença entre o autor e investigador e o réu?
Não podemos nos esquecer que a atividade processual de investigação pode servir tanto ao órgão titular da ação penal quanto para a defesa, na medida que as provas vão sendo produzidas e os fatos esclarecidos durante o Inquérito Policial e , ainda mais longe, o fato de haver um órgão designado para fiscalizar a Polícia Judiciária com poderes de requisição confere importante direito e garantia individual de toda a sociedade organizada na preservação e correição desta relevante função constitucional que reflete diretamente na esfera das liberdades individuais em face do Estado.
Acredito que a solução do problema não está no inchaço, a nosso ver inconstitucional, do Ministério Público. A solução é repensar a Polícia Judiciária e libertá-la da subordinação administrativa e financeira de uma esfera de Poder que em nada participa do Processo Penal e que muitas vezes sequer o deseja.
Outra importante distorção inconstitucional infelizmente se apresenta na prática. Verificamos que unidades militares, notadamente as Polícias Militares Estaduais, vêm insistindo em promover atos processuais de investigação criminal. Tal se apresenta em frontal inconstitucionalidade e arrepia o direito a liberdade de toda a sociedade. A investigação criminal reflete-se em um poder estatal que repercute na esfera da liberdade do cidadão. Assim somente órgãos com atribuição constitucional e previstos e regulados no Código de Processo Penal podem realizar atos processuais que podem culminar na restrição da liberdade e constrição de bens e direitos do cidadão exposto á investigação.Esta é a garantia constitucional do devido processo legal constitucional,que não pode ser relegada a segundo plano.
Nessa ótica cabe ao Ministério Público, fiscal da correta aplicação das leis, identificar e fulminar tais práticas mediante a anulação de tais atos de investigação criminal espúrios e expor os agentes ao devido processo legal para que respondam por seus atos.
Neste contexto, devemos trazer ao debate quais garantias constitucionais mínimas que a Polícia Judiciária precisa para o desempenho do Inquérito Policial e para a estruturação de sua Corregedoria; precisamos discutir qual o grau de independência funcional, financeira e administrativa são eficientes para o desempenho livre da investigação criminal no nosso país.
Em conclusão, constatamos que o sistema criminal brasileiro funda-se em 4 grandes pilares: Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Judiciária e Defesa Técnica.Portanto, devemos analisar o modelo de Polícia Judiciária hoje vigente na Constituição e estudar as garantias e deveres que devam estar inseridos na carta magna para que esta relevante função processual seja elevada a prioridade condizente à altura do Direito Constitucional à Segurança Pública e à altura de ser a primeira fase da persecução penal disciplinada pelo Código de Processo Penal.
Cabe a nós operadores do Direito não só estudar os institutos jurídicos mas também analisar se os mesmos tem adequação, pertinência e eficiência aos objetivos para os quais existem.
Para tanto convido toda a comunidade jurídica a debruçar-se sobre esta matéria , inaugurando um saudável debate de forma a se repensar o sistema e estruturá-lo convenientemente de modo a otimizar a investigação no Processo Penal e concretizar o Direito Constitucional à Segurança Pública que tem o seu maior reflexo na correta investigação criminal que deve ser independente e submetida a um rigoroso controle correicional em que participem todas as instituições que operam o sistema criminal.
TARCÍSIO ANDREAS JANSEN
DELEGADO DE POLÍCIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Tarcísio Andreas Jansen, delegado de Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro