A mãe do dossiê

26 de maio de 2008 12:33

No início de fevereiro, o Palácio do Planalto vivia momentos de extrema tensão. A iminente CPI dos gastos com cartões corporativos rondava o governo Lula e poderia nocautear diversos ministros, além de criar situações constrangedoras ao próprio presidente. Era preciso reagir. Foi nesse contexto que começou a gestação de uma relação com os gastos sigilosos do expresidente Fernando Henrique Cardoso e da ex-primeira-dama Ruth Cardoso. A mãe dessa lista, mais tarde chamada de dossiê, é Erenice Alves Guerra, secretária-executiva da Casa Civil e fiel escudeira da ministra Dilma Rousseff. Na ensolarada manhã da sexta-feira 8 de fevereiro, Erenice convocou quatro pessoas para uma reunião de emergência em seu gabinete: o secretário de Administração, Norberto Temóteo Queiroz, o ex-secretário de Controle Interno José Aparecido Nunes Pires, a chefe de gabinete de Erenice, Maria de La Soledad Castillo, conhecida como Marisol, e o responsável pela Diretoria de Orçamento e Finanças, Gilton Saback Maltez. Num tom enérgico que faz jus ao sobrenome que carrega, Erenice começou a reunião com uma frase que lhe é característica. Isto é uma ordem, afirmou. Em seguida, explicou que a missão prioritária daquele grupo seria a de fuçar, esmiuçar e compilar gastos com cartões corporativos desde 1998 (ano em que FHC se elegeu para o segundo mandato), de preferência aqueles que pudessem vir a constranger o ex-presidente e dona Ruth, caso se tornassem públicos. Nenhum dos presentes fez qualquer questionamento e a reunião foi encerrada da mesma forma como começou: Isto é uma ordem.

Na segunda-feira seguinte, 11 de fevereiro, os dados solicitados por Erenice começaram a ser organizados e filtrados na Diretoria de Logística (Dilog). A maior parte do material foi utilizada para a formação do que a ministra Dilma posteriormente chamaria de banco de dados sobre os gastos com cartões e aqueles considerados sigilosos. Uma outra parte, escolhida a dedo, segundo os critérios ditados por Erenice na reunião de 8 de fevereiro, era copiada e a cópia preenchia um outro arquivo paralelo de uma planilha Excel. Foi esse arquivo paralelo que em 20 de fevereiro deixou o computador de José Aparecido na Casa Civil e aportou na caixa postal eletrônica de André Fernandes, assessor parlamentar do senador Álvaro Dias (PSDB-PR), um dos mais eloqüentes defensores de uma CPI para investigar os gastos com os cartões corporativos do governo Lula.

Como fora planejado por Erenice, os gastos que em tese poderiam constranger o primeiro- casal do governo anterior acabaram se tornando públicos. Mas a fiel escudeira da ministra Dilma perdeu o controle da situação quando a Polícia Federal se instalou no interior da Casa Civil para realizar uma investigação sobre o vazamento de dados sigilosos. Sob o comando do ministro da Justiça, Tarso Genro, que não reza pela mesma cartilha de Dilma, a PF não poupou ninguém e agiu mais rápido do que de costume.

O assessor parlamentar André e o ex-secretário de Controle Interno da Casa Civil José Aparecido são velhos conhecidos, embora não mantenham relação de profunda amizade. Ambos ficaram preocupados com os rumos tomados pela investigação da PF, que identificou não só o computador de onde os dados saíram como também o equipamento a que foram remetidos. Na segunda- feira 24 de março, os dois marcaram um almoço no pequeno restaurante do Clube Naval de Brasília. José Aparecido sabia que o seu indiciamento pela Polícia Federal seria uma questão de tempo. André lhe sugeriu, então, que assumisse toda a responsabilidade pelo vazamento. Você precisa dizer que fez tudo e assumir a responsabilidade por isso, disse André. Você está louco? Não vou assumir nada. Até porque quem estava fazendo era a Erenice, respondeu José Aparecido. Dias depois, ele soube que André havia usado o telefone celular para gravar a conversa que tiveram no restaurante. Na semana passada, em depoimento prestado na CPI, José Aparecido estava munido de uma decisão judicial que lhe assegurava o direito de não responder o que lhe fosse perguntado e até de mentir. Mesmo assim, estava disposto a contar como Erenice comandou a elaboração do dossiê. Mas, como André, que prestou depoimento horas antes, não apresentou a gravação, preferiu poupar a ex-chefe. Não detalhou nem a reunião do dia 8 de fevereiro nem o conteúdo da conversa no restaurante do Clube Naval. André, porém, foi enfático ao dizer que teve de José Aparecido a informação de que foi mesmo Erenice a mãe do dossiê.

Na Casa Civil, até quem não participou do processo de produção do que o governo convencionou chamar de banco de dados vê com naturalidade o fato de a orientação ter partido da secretáriaexecutiva da Pasta. Nascida na capital federal, Erenice  advogada formada pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (Ceub), com especialização nas universidades de São Paulo (USP) e de Brasília (UnB)  sempre teve carta branca de Dilma para se movimentar e agir livremente, mesmo sobre questões administrativas mais delicadas. Segundo assessores da Casa Civil, a advogada de 49 anos, na ausência de Dilma, comanda a Casa Civil com mão de ferro. Não raro, aos berros. Durona e enérgica, características comuns a Dilma no estilo de comandar, Erenice não costuma se deixar intimidar nem por figuras de proa do governo Lula.

Ministros como Luis Dulci, da Secretaria- Geral da Presidência, e Franklin Martins, da Comunicação Social, já teriam experimentado a ira da mãe do dossiê.

Uma demonstração de que Erenice é uma fortaleza na Casa Civil é a quantidade de tarefas que Dilma sempre delegou à subordinada. Em 2007, ela foi escalada por Dilma para fiscalizar com lupa a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), cujo orçamento anual supera R$ 1,5 bilhão, depois que a Controladoria- Geral da União encontrou diversas irregularidades no órgão. No ano passado, Erenice nomeou seu irmão Antônio Eudacy Alves Carvalho para um cargo na Infraero de Salvador. Eudacy, no entanto, acabou exonerado em agosto do mesmo ano pelo atual presidente da empresa, Sérgio Gaudenzi, depois que a imprensa publicou uma série de reportagens sobre o cabide de empregos em que a Infraero se transformara. No final de 2007, Erenice voltou a dar demonstrações de sua força: vetou uma indicação do ministro das Comunicações, Hélio Costa, para conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações. Costa ficou uma fera. Não conseguiu, no entanto, emplacar o afilhado político Jarbas Valente.

Também foi ela quem convenceu os controladores de vôo a suspender o motim de março do ano passado. Junto com o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, Erenice chegou por volta das 23h ao Cindacta 1, em Brasília, e começou a negociar com os grevistas. Mostrou pulso. Estamos cansados de promessas. Nossos anseios estão engavetados. Não houve nada de concreto até hoje, reclamou um dos líderes dos controladores. Nós nunca viemos aqui antes para prometer absolutamente nada para vocês. Então, para essa relação ficar qualificada, não pode partir dessa premissa, rebateu Erenice.

Dilma se encantou com Erenice no governo de transição, quando a advogada foi chamada para integrar a equipe do futuro governo Lula e impressionou pelos conhecimentos sobre o setor energético adquiridos na Eletronorte, quando ocupou cargos de gerência de 1981 a 1994. No Ministério de Minas e Energia, Erenice foi o braço direito de Dilma na formulação do novo modelo do setor. Em uma reunião com assessores, Dilma chegou a dizer que Erenice era um modelo de profissional. Gosto de trabalhar com gente competente como Erenice, disse Dilma.

Já à frente da Casa Civil, Dilma incumbiu Erenice de monitorar setores importantes do governo. A advogada foi nomeada para os conselhos da Petrobras, da Eletronorte e da Companhia Hidrelétrica do São Francisco. Este ano saiu da Petrobras, mas ganhou uma cadeira no conselho do BNDES. Somando todas as funções, Erenice recebe cerca de R$ 30 mil mensais. O salário mensal dos secretários-executivos, como Erenice, é de R$ 12,7 mil. Além disso, ela ganha cerca de R$ 4,5 mil de cada conselho que integra. São os chamados jetons. Ainda em 2006, por relevantes serviços prestados ao governo, Erenice foi condecorada com a medalha do Mérito Mauá, concedida pelo Ministério dos Transportes.

Mãe de duas filhas, Erenice mora na Asa Sul. Católica, freqüenta as missas da Igreja São Paulo Apóstolo. A exemplo da chefe, também não descuida da aparência. Foi ela, inclusive, quem indicou o salão de beleza Metamorphose, do qual Dilma se tornou habitué. Na Casa Civil, costuma usar vestidos escuros, não raro pretos, e bem comportados. Mas abusa da extravagância ao usar chapéus e boinas nos eventos palacianos. No quarto andar do Palácio do Planalto ninguém ousa fazer reparos à maneira de Erenice se vestir. Atualmente, no entanto, há quem não se acanhe em dizer que a segunda mulher da Casa Civil avançou o sinal ao produzir um dossiê sobre gastos sigilosos do antecessor do presidente Lula.

A história do dossiê
A ordem
Em 8 de fevereiro, Erenice Guerra convoca reunião em seu gabinete e determina a montagem de uma lista com gastos que pudessem constranger o ex-presidente FHC e dona Ruth

A edição
Em 11 de fevereiro, alguns dados sigilosos são pinçados de um banco de dados e separados em arquivo paralelo, numa planilha Excel. É o arquivo que a oposição chama de dossiê

A revelação
Depois de a PF começar a investigar o caso, José Aparecido Nunes Pires revela ao assessor parlamentar André Fernandes que Erenice comandou a elaboração do dossiê

Na CPI
Com uma decisão judicial que lhe permite se calar e até mentir, José Aparecido se recusa a contar tudo o que sabe aos parlamentares, mas será denunciado pela PF