A nobre missão de tocar violão
Um homem nasceu destro. Logo, o cérebro deu à sua mão direita a nobre missão de tocar violão. Esse homem, é claro, tinha somente uma mão direita, mas tocar violão não era a única tarefa que o cérebro tinha determinado para ele fazer. Existiam várias outras tarefas que cabiam às outras partes do corpo executar.
No entanto, a missão principal da mão direita (tocar violão) era uma das que mais chamava a atenção das outras partes do corpo, porque todos sabiam que o cérebro, o grande coordenador das atividades e distribuidor dos recursos, gostava de boa música e que isso proporcionava um reconhecimento especial à mão direita. E elas sabiam também que esse reconhecimento vinha, não só do cérebro, pois eram comuns os aplausos entusiasmados, vindos de fora, toda vez que a mão direita tocava uma bela música com a maestria que lhe era peculiar.
Então a mão esquerda, que também tinha a sua missão já definida, mas que morria de inveja da mão direita, mesmo sem a permissão do cérebro, começou também a tocar violão, esperando, com isso, obter mais reconhecimento do que ela já tinha. No começo, ela não tocava assim tão bem, mas, com o passar do tempo, ela foi se aperfeiçoando cada vez mais e, assim, foi ganhando certo reconhecimento do cérebro e das demais partes do corpo.
Isso chegou a um ponto em que parecia que apenas a mão direita, que – a essa altura já estava meio cansada daquela situação – é que se importava com o fato de a mão esquerda estar fazendo uma tarefa que originalmente era só sua. Some-se a isso o fato de que a mão direita tinha que dar conta de muitas outras tarefas, além de tocar violão, que, constantemente, lhes eram impostas pelo cérebro.
O cérebro, nem vinha percebendo, ou fazia de conta que não percebia, o que estava acontecendo. Ele tinha tantas outras atividades para coordenar que nem havia prestado atenção ao fato de que a mão esquerda vinha dedicando uma boa parte de seu tempo, de seus recursos e de suas habilidades para fazer coisas totalmente diferentes daquelas que lhes haviam sido confiadas inicialmente. Talvez o cérebro estivesse pensando algo assim: Está tudo bem – o que importa é que o violão está sendo tocado e eu gosto da música que estou ouvindo.
O que o cérebro não percebia é que essa sua negligência havia desencadeado uma perigosa aventura das outras partes do corpo, que deixaram de lado as suas tarefas principais e estavam agora dedicando grande parte de seus recursos para executarem outras atividades que, de certa forma, lhes traziam reconhecimento. Em pouco tempo, cada membro do corpo foi ficando fraco naquilo que era sua tarefa específica e, aparentemente, forte na tarefa que aprendeu, mas que cabia a outras partes.
Em pouco tempo, começou uma verdadeira guerra entre as várias partes do corpo, pois nenhuma gostava de ver a outra fazendo aquilo que era sua tarefa original, principalmente porque isso rendia reconhecimento para esse outra parte e enfraquecia aquela a quem cabia originalmente realizar a tarefa.
Não demorou e o cérebro começou a perceber que tinha perdido o controle da situação e que já não mais obtinha os resultados que esperava das várias partes do corpo, pois os comandos que ele enviava para a mão esquerda, por exemplo, já não surtiam mais o efeito desejado. A mão esquerda se julgava no direito de fazer o que bem quisesse e, pior, do jeito que quisesse, sem ter que obedecer ao cérebro ou mesmo ter que se submeter a qualquer tipo de controle. O cérebro não sabendo o que fazer para retomar o controle, preferiu lavar as mãos e ficava, equivocadamente, esperando que a situação se resolvesse sozinha.
A mão direita, por sua vez, estava muito enfraquecida com aquela situação e, sem poder contar com o cérebro, que tinha lavado as mãos, mal conseguia cumprir, minimamente, a sua missão original.
E a mão direita estava assim, porque os recursos que deveriam servir para a realização da sua missão principal estavam agora sendo divididos com outras partes do corpo e o pouco que lhe cabia era empregado também em muitas tarefas secundárias, o que fazia com que a música tocada pela mão direita não fosse mais aquela de antes – a mão direita ainda tocava o violão, mas já não era com a qualidade de antes. A mão direita tentava explicar o porquê da sua aparente incompetência, mas o cérebro não queria nem ouvir suas explicações – ele queria era que ela, de um jeito ou de outro, tocasse o violão com maestria, o que já não era mais possível ante aquela situação.
Nesses momentos, a mão esquerda, espertamente e como quem não quer nada, aparecia tocando violão, com certa maestria, e o cérebro e as outras partes do corpo gostavam daquilo que ouviam, deixando a mão direita cada vez mais desprestigiada. Mas, se perguntassem à mão esquerda sobre como estava a sua tarefa original, talvez ela não tivesse uma boa resposta, revelando o absurdo que tudo aquilo tinha gerado.
Eis que a mão direita, então, teve uma ideia brilhante. Finalmente, ela percebeu que a sua música tinha diminuído na qualidade não porque a mão esquerda havia começado a tocar violão também, mas sim porque ela própria estava dedicando grande parte do seu tempo para apontar o que a mão esquerda estava fazendo de errado e, assim, tinha esquecido de que ela mesma deveria assumir 100% da responsabilidade pelo seu resultado e focar a sua atenção no que ela poderia fazer bem feito para cumprir a sua missão.
Então, dessa forma reassumiu o controle da situação e iniciou uma nova jornada em sua existência. A mão direita pensou: A partir de hoje vou voltar a visualizar claramente a minha missão e que se dane a mão esquerda, se ela quiser continuar a fazer o que está fazendo, se quiser continuar gastando seus recursos em tarefas que originalmente não são suas, que continue. Isso é problema dela e de quem tem a função de comandá-la e não meu. E a mão direita continuou pensando: Se o cérebro está pensando que eu vou ficar me lamentando pelos cantos, ele está muito enganado. Eu vou livrar-me de todo peso desnecessário que até hoje tenho carregado e vou especializar-me cada vez mais na minha missão principal, sem esquecer as tarefas secundárias, para poder mostrar a mim mesmo e a todos que sou capaz de cumpri-las e que podem contar comigo para sempre.
Com essa nova forma de pensar, agora muito clara em sua mente, a mão direita, visando a se especializar cada vez mais na sua missão original, convocou todos os cinco dedos e resolveu se reorganizar internamente, prestigiando ao máximo o que cada um podia fazer de melhor, sem concorrerem entre si. E isso fez com que, em pouquíssimo tempo, a mão direita voltasse a desempenhar bem a sua função original, chamando a atenção do cérebro, das demais partes do corpo e também de fora, resgatando e aumentando o desejado reconhecimento, já que, agora, voltou a tocar o violão com a tão necessária maestria.
Estranhamente um fenômeno parecido com o de antes voltou a acontecer. A mão esquerda, vendo que a mão direita ganhava reconhecimento por fazer bem feito apenas a sua própria missão, enfim, percebeu que seria melhor para ela também investir seus recursos na sua própria missão.
E assim a harmonia voltou a reinar naquele corpo.