A nova cara da Abin

22 de abril de 2008 10:09

Na prática, a Abin mal consegue detectar a presença de corrupção dentro do governo, falha na investigação de indicados para postos federais e segue sem conseguir se desvencilhar da marca sombria do antigo Serviço Nacional de Informações (SNI) dos tempos da ditadura. Do ponto de vista funcional, carece de servidores, não tem plano de carreira e não se integra às demais áreas de inteligência do aparato estatal.

Não são poucos, portanto, os desafios do delegado Paulo Lacerda, ex-diretor-geral da Polícia Federal e, há sete meses, chefe da agência. A todo interlocutor convidado a entrar no amplo gabinete que ocupa no prédio central da agência, Lacerda faz questão de dar algumas explicações preliminares. São elas: 1) a Abin não faz bisbilhotagem pessoal nem espionagem política; 2) é um órgão de inteligência moderno, voltado para a produção de informação relevante ao Estado democrático; 3) não é o SNI; 4) ela vai mudar. Antes de Lacerda, outros chefes falharam na tarefa de dar nova cara ao órgão.

O delegado pretende reestruturar a Abin, mas sem criar cargos. Pensa em remodelar a estrutura, que mantém muita gente nas atividades meio e um grupo pequeno de agentes atrás de informações.

O novo modelo vai incluir uma novidade, o Departamento de Contraterrorismo. Lacerda faz questão de ser muito claro ao escrever a proposta, entregue ao general Jorge Armando Félix, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), a quem está subordinado: o tema nada tem a ver com a presença de tropas das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) nas fronteiras amazônicas do Brasil. O chefe da Abin acompanha o pensamento oficial da diplomacia e do governo brasileiro. O delegado não considera as Farc um grupo terrorista, mas uma organização criminosa envolvida com seqüestros e tráfico.

Lacerda acostumou-se, na Polícia Federal, a receber informações sobre a presença das Farc nas fronteiras, assim como as tem recebido, nos últimos meses, da Abin. Em ambos os casos, policiais e arapongas dizem a mesma coisa. As entradas em território brasileiro não têm qualquer ligação com as atividades políticas ou criminosas do grupo colombiano. Os militantes entram limpos, sem armas ou uniforme militar, somente para comprar víveres. Uma vez abordados pela PF, só são detidos se contra eles pesar mandado internacional de prisão, ou se cometerem algum crime em território brasileiro.

A concepção do Departamento de Contraterrorismo, parte da reestruturação da Abin, tem como foco a prevenção e a colaboração com outras agências internacionais de inteligência.
A Abin tem sido procurada por serviços secretos dos Estados Unidos, Rússia, China, Alemanha, Israel, Inglaterra, Espanha, Itália e Argélia, todos em busca de informações sobre terroristas possivelmente escondidos ou em trânsito no Brasil.

A ida de Lacerda para a agência criou uma salvaguarda no relacionamento com as comunidades árabes e muçulmanas instaladas no Sul, notadamente na região de Foz do Iguaçu, a chamada Tríplice Fronteira Brasil-Paraguai-Argentina.

Com os atentados de 11 de setembro de 2001, americanos e europeus estão de olho nos árabes residentes em Foz do Iguaçu. Por diversas vezes, organismos de inteligência capitaneados pela CIA acusaram a comunidade muçulmana local de fazer parte de um esquema global de financiamento do terrorismo internacional. Em cinco anos como diretor da PF, Lacerda garante jamais ter encontrado prova capaz de embasar essa suspeita.

Todas as investigações apontaram apenas a existência de remessas legais de dinheiro de imigrantes e descendentes para parentes no Oriente Médio e no Afeganistão. Na época da investigação do esquema de envios ilegais no Banco do Estado do Paraná (Banestado), em 2004, a PF abriu mais de 600 inquéritos em Foz do Iguaçu e não encontrou nada contra os árabes, muito menos ligação com terroristas. Ao contrário, a maior parte do dinheiro usado no esquema de evasão de divisas, calculada em 30 bilhões de dólares, passava por um banco de Nova York.

Para garantir excelência nas apurações e ter apoio de uma base de dados consolidada, o setor de contraterrorismo a ser criado na Abin vai trabalhar em parceria com os federais. Será uma forma de também incluir as agências internacionais interessadas em saber da existência ou não de atividade terrorista no Brasil, mas sem premissas baseadas em mera desconfiança.

Lacerda tem acelerado a troca de conhecimento e experiência entre servidores da Abin e de agências estrangeiras, por meio de programas de intercâmbio. Para o delegado, um dos pontos determinantes para a criação do departamento é poder passar para fora do Brasil a noção de que, embora não haja movimentos terroristas no território nacional, o Estado estará preparado para qualquer eventualidade.

Há duas semanas, o chefe da Abin tomou uma lição dura sobre o imponderável dentro do sistema do qual faz parte: 20 dias depois de receber uma delegação da Argélia para debater estratégias do setor, um atentado terrorista em Argel detonou uma base militar, com 60 mortos. Reforçou nele a sensação de que o Brasil não pode parecer um país alheio a essa circunstância.

O ex-diretor da PF vive um período de adaptação na Abin, mas tem o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, notória vítima do antigo SNI, preso com base na Lei de Segurança Nacional quando liderava as greves de metalúrgicos no ABC paulista no início dos anos 1980. Ao assumir o cargo, em setembro do ano passado, Lacerda ouviu a seguinte orientação de Lula, nitidamente incomodado com a má fama do serviço secreto brasileiro: Vê lá o que você pode fazer com aquilo. Logo, o delegado percebeu que a tal herança do SNI é pequena. Menos de 10% dos quadros da agência são de remanescentes do antigo serviço montado pela ditadura.

O sistema sofreu muitos reveses, sobretudo durante o governo Fernando Collor, quando todos os servidores foram colocados em disponibilidade e se criou a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), que não era nada. Houve, então, uma diáspora de funcionários. Em 1990, eram 4,6 mil em todo o País. Em 2008, há 1,6 mil deles para gerir o setor de inteligência nacional. Para Lacerda, são necessários ao menos 5 mil servidores para a Abin funcionar a contento, por causa do tamanho e da complexidade dos problemas no Brasil. Até 2010, ele pretende chegar a ter 3 mil funcionários na agência, além de implantar um plano de carreira, razão de uma greve até então inédita, em 2003, dos arapongas brasileiros.

Entre as mudanças programadas consta ainda a criação de uma Diretoria de Gestão de Pessoal, uma Corregedoria-Geral para investigar irregularidades cometidas por funcionários e uma Assessoria de Controle Interno com o objetivo de fiscalizar as contas da Abin, inclusive o controle de verbas secretas e o uso dos cartões corporativos da agência. Detalhe: a proposta de criação da assessoria é de outubro de 2007, antes, portanto, da crise que gerou a CPI da Tapioca.

Lacerda pretende, ainda, fazer valer o chamado Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), do qual a Abin faz parte. Criado em 1999, o Sisbin sobrevive de forma precária. Os integrantes do sistema, recrutados entre 14 ministérios, se reúnem a cada cinco meses para, invariavelmente, não decidirem nada. Há discussões políticas, propostas mirabolantes, mas o mais importante, a troca de informações relevantes, não acontece. Para viabilizar essa comunicação, o chefe da Abin ordenou uma obra no prédio do anexo J do complexo da Abin, no Setor Policial Sul de Brasília. Lá, será instalado o Departamento de Integração do Sistema de Inteligência Brasileiro. Dentro dele funcionará um centro integrado com plantão de 24 horas.

A idéia é dar a cada ministério envolvido no Sisbin uma sala privativa, completamente equipada, que só poderá ser acessada por pessoal credenciado (cinco funcionários em cada unidade), mediante uma senha fornecida e regularmente alterada pela Abin. Cada órgão terá um banco de dados específico com links diretos para o sistema central de inteligência da agência. Dessa forma, Lacerda pretende suprimir todas as comunicações feitas por papel e incrementar o compartilhamento de informações entre os muitos níveis de governo. Os ocupantes de cada sala serão investigados pela Abin antes de assumir os postos.

O próximo passo será convencer o Congresso a autorizar a Abin a fazer escutas telefônicas, obviamente com permissão do Poder Judiciário. Uma lei iria definir as hipóteses para aplicação de grampos (telefônicos ou de e-mails), entre elas, a de ameaça terrorista, sabotagem ou crimes contra a segurança do Estado de direito democrático  nomenclatura cuidadosamente pensada para substituir o termo segurança nacional, conceito político, consolidado em lei, usado durante a ditadura para enquadrar opositores do regime. Paciente, ele só deverá levar o assunto adiante depois de mostrar trabalho. Para grampear cidadãos, costuma dizer Lacerda, a Abin precisa, antes de tudo, ter crédito junto à sociedade.