Algemar as algemas
Talvez os Estados Unidos não sejam o exemplo definitivo de regime democrático isento de censura, até porque a democracia é processo sempre em evolução. As revolucionárias mudanças de conceitos morais, sociais e econômicos, impulsionadas pelos avanços tecnológico-cibernéticos, criam o caldo de cultura para novos direitos. Aos Estados organizados sob a chancela do respeito às liberdades individuais e públicas cumpre agir para protegê-los. Não parece restar dúvidas de que a democracia norte-americana é a mais visível quanto ao deferimento de garantias essenciais clássicas e das demais fermentadas pelo mundo em trepidação.
Supõe-se que o retrato acima estampado não vai além do óbvio, salvo para quem cultiva preconceitos estribados em ideologias envelhecidas e envilecidas. Mas há conjunturas em que é indispensável colocar o óbvio em cena. Nos EUA, usam-se algemas para conduzir malfeitores à cadeia e a audiências nos tribunais. Ninguém está a salvo da providência, seja o infrator nabado de Wall Street, seja o batedor de carteira nos desvãos dos subways. Trata-se, como se vê, de constrição democrática -, atinge a todos sem distinção de classe ou poder econômico. Realiza-se o ideal dos Estados civilizados de que todos são iguais perante a lei.
Os responsáveis pelo escândalo mundial suscitado pela venda de hipotecas imobiliárias podres (subprime) foram algemados, presos e condenados. Eram pessoas que poderiam chegar à cadeia ou aos cancelos judiciais sem necessidade de serem algemadas. Não tinham qualquer possibilidade de resistir à ordem de prisão. Até mesmo o então diretor-geral do FMI, Dominique Strauss-Kahn, acusado de abuso sexual, não escapou do sistema adotado pelo estamento policial. Não se livrou das algemas, malgrado alegasse imumidade diplomática.
Mas por que a prática é aplicada sem exceções? Trata-se de medida de índole pedagógica. Corresponde à advertência de que todos aqueles que ousarem violar a lei, em particular detentores do poder econômico e políticos desonestos, aparecerão algemados nas telas de TVs do país. É terapia social para inibir quem deseje ultrapassar as fronteiras legais. Se serve para proteger a sociedade e o Estado, com certeza serve, sobretudo, para a maior credibilidade do regime de franquias democráticas.
No caso de recorrência às algemas para os detidos por envolvimento, segundo a Polícia Federal, em desvios de recursos do Ministério do Turismo, levantou-se esbravejante recriminação. A presidente Dilma Roussef disse que a conduta da PF foi um "acinte" e, logo depois, afirmou que a utilização das algemas ofende a dignidade das pessoas. Os políticos, de forma ainda mais irada, solidarizaram-se com a presidente.
Pensava-se que o povo era a vítima do acinte dos que assaltam os cofres públicos. Pensava-se que o povo, há tempos imemoriais, era espezinhado na sua dignidade pela pilhagem do patrimônio comum dos brasileiros. Pensava-se que os ofendidos eram os trabalhadores, que recolhem de forma compulsória ao governo impostos correspondentes a cinco salários por ano – e assistem parte substancial de semelhantes recursos repassados à delinquência oficial. Pensava-se que a escassez de verbas fruto da razia no pote do Tesouro respondia por milhares de brasileiros expostos à morte nas filas e corredores infectos de hospitais públicos. Pensava-se que a apropriação criminosa de provimentos orçamentários causava as miseráveis aposentaorias e pensões pagas pelo INSS a 10 milhões de brasileiros.
A corrupção no Brasil custa entre R$41,5 bilhões e R$69,1 bilhões ao bolso dos contribuintes (dados da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo-Fiesp). Mas a prioridade não é processar e punir corruptos. A prioridade é aprisionar as algemas. Melhor, algemar as algemas.
Josemar Dantas é editor do Suplemento Direito & Justiça, membro do Instituto Dos Advogados Brasileiros