Artigo: Corrupção passiva e ativa – Enriquecimento ilícito – Servidor Público
CORRUPÇÃO PASSIVA E ATIVA – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO – SERVIDOR PÚBLICO – INTERCÂMBIO DE INFORMAÇÃO SIGILOSA (ART. 6º E § ÚNICO, LC 105/2001) – GARANTIA DO SIGILO DE DADOS (ART. 5º, XII, CF)
*Sebastião José Lessa
Raphael Pereira Lessa [1]
Quebra de Sigilo de Dados
No ponto, o estudo objetiva analisar o alcance “contingenciado” dos dispositivos da Lei Complementar nº 105/2001, que“permitem à Receita Federal receber dados bancários de contribuintes fornecidos diretamente pelos bancos, sem prévia autorização judicial”, desde que mantido o sigilo [3]. A quaestio abriu o debate no Plenário do Supremo Tribunal Federal [4].
Com efeito, no julgamento do RE 601314, Plenário, maioria, novamente se discutiu a constitucionalidade do art. 6º e § único, da LC nº 105/2001, quando “prevaleceu o entendimento de que a norma não resulta em quebra de sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros.” [5].
Em verdade, o intercâmbio de informação sigilosa e a quebra do sigilo de dados têm em comum, prioritariamente, a busca pelo conhecimento da situação financeira e tributária do investigado.
No caso em debate, ao nosso ver, o efeito invasivo do primeiro é relativamente contingenciado, é dizer, restrito para o desencadeamento do procedimento investigativo em face do contribuinte.
Enfim, para o Pretório Excelso, em decisão por maioria, desde que mantido o sigilo, a transferência de dados da esfera bancária para a fiscal, por si só, não fere a norma que garante o sigilo de dados [6].
O aparente conflito, em verdade, parece traduzir a fugidia percepção de ambiguidade, muito embora esta sensação deva ser repelida.
1ª PARTE – STF, RE 389808, DJe 10.05.11
LEI nº 8.429/1992 – ENRIQUECIMENTO ILÍCITO DO AGENTE PÚBLICO – BUSCA DA CONFIGURAÇÃO
De início, é bom consignar que o intercâmbio de informação sigilosa [7] e a garantia do sigilo de dados [8] serão aquilatados prioritariamente sob a perspectiva da Lei nº 8.429/1992, que dispõe sobre a improbidade administrativa e, sobretudo, o eventual enriquecimento ilícito do agente público [9].
Para a coleta da prova será de grande utilidade fixar os pontos de alcance legítimos da investigação, diante da garantia do sigilo de dados [10].
Esse enriquecimento ilícito, no leito do art. 9°, caput e incisos, da Lei n° 8.429/1992, amolda-se ao auferimento de qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício do cargo, mandato, função, emprego ou atividade nas entidades mencionadas no art. 1° da citada Lei.
Destaque para o inciso VII, do art. 9º, da Lei nº 8.429/1992, ou seja, o enriquecimento ilícito presumido.
Na lição de Mauro Roberto Gomes de Mattos [11]:
O princípio de que é defeso o enriquecimento sem causa nasceu do direito privado, não decorrendo de dispositivos contidos em texto legal. Esta teoria foi revelada inicialmente pelas jurisprudências francesa e italiana, que condenaram, de forma permanente, o locupletamento, ao afirmar frequentemente o direito, que cabe ao empobrecido, à restituição do aumento da riqueza verificado à sua causa, a favor do outro patrimônio.
Nessa ótica, vem ao encontro da matéria o texto do Código Civil:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita atualização dos valores monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.
Sanção e Ressarcimento do Dano – Distinção
De real valia a distinção: “Saliente-se que, consoante posição assumida pelo STJ em acórdão proferido no REsp 622.234/SP (2004/0012011-0) o ressarcimento de danos não é propriamente uma sanção: 9. As Turmas que compõem a Primeira Seção do STJ já se posicionaram no sentido de que, caracterizado o prejuízo ao erário, o ressarcimento não pode ser considerado propriamente uma sanção, senão uma consequência imediata e necessária do ato combatido, razão pela qual não se pode excluí-lo, a pretexto de cumprimento do paradigma da proporcionalidade das penas estampado no art. 12 da Lei 8.429/1992. (C.f.: REsp 664.440/MG, Rel. Min. José Delgado, DJU 08.05.2006.”
E mais: “O ressarcimento ao erário se aproxima mais da teoria da responsabilidade civil do que penal ou das sanções administrativas (…)” [13].
2ª PARTE – STF, RE 601314, DJe. 24.02.16
ABORDAGEM PRELIMINAR
Neste estudo, é bom reiterar, tendo como pano de fundo a conduta do servidor público, será abordada a questão envolvendo a quebra e o sigilo de dados – direitos e garantias fundamentais – e os limites invasivos do intercâmbio de informação sigilosa [14].
Como já dito, no julgamento de mérito do RE 389808 – STF, ficou decidido [15]:
“SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.”
Convém destacar que o colacionado RE 389808 – STF, encontra-se fustigado por Embargos de Declaração, com pedido de modificação da decisão proferida e concluso a o Relator em 09.11.2011, como se vê da consulta processual no site do STF em 25.04.2017.
Ademais, essa delicada questão [16], posteriormente, voltou ao c. Supremo Tribunal Federal, que abraçou entendimento distinto [17]:
“Por maioria de votos – 9 a 2 –, prevaleceu o entendimento de que a norma não resulta em quebra de sigilo bancário, mas sim em transferência de sigilo da órbita bancária para a fiscal, ambas protegidas contra o acesso de terceiros. A transferência de informações é feita dos bancos ao Fisco, que tem o dever de preservar o sigilo dos dados, portanto não há ofensa à Constituição Federal.”
Expressivo, inclusive para reflexão, o voto do Min. Ricardo Lewandowski:
“[…] me convenci de que estava na senda errada, não apenas pelos argumentos veiculados por aqueles que adotaram a posição vencedora, mas sobretudo porque, de lá pra cá, o mundo evoluiu e ficou evidenciada a efetiva necessidade de repressão aos crimes como narcotráfico, lavagem de dinheiro e terrorismo, delitos que exigem uma ação mais eficaz do Estado, que precisa ter instrumentos para acessar o sigilo para evitar ações ilícitas, afirmou.”
REPERCUSSÃO GERAL (ART. 102, § 3º, CF)
Com efeito, no julgamento pelo c. Supremo Tribunal Federal do RE 601314, DJe. 24.02.2016, ampla maioria, ficou assentado, com repercussão geral [18], que o Fisco tem “acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial”.
A síntese da decisão, em 24.02.2016, registra:
Decisão: O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, apreciando o tema 225 da repercussão geral, conheceu do recurso e a este negou provimento, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello.
E mais:
O art. 6º da Lei Complementar 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal”; (…) vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. Ausente, justificadamente, a Ministra Cármen Lúcia. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski. Plenário, 24.02.2016.
CONCLUSÃO
Diante de tais fundamentos e das decisões judiciais aqui colacionadas, é razoável concluir:
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“Enriquecimento ilícito do agente público – evolução patrimonial anômala”[19] [20]:
1. A evolução patrimonial do agente público, há de estar de acordo com o seu ganho, com suas rendas. Havendo grande divergência, em princípio, presente está o fumus boni iuris demonstrando que houve enriquecimento ilícito.
2. Insurgindo-se o servidor, ainda que evidenciado o fumus boni iuris, em favor da administração pública da grande variação patrimonial do agente, sem lastro legal, cabe, a ele demonstrar o perigo que corre com o arresto dos seus bens imóveis – o periculum in mora. (…)”
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Enriquecimento Ilícito – Prova:
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Mantido o sigilo [21], é garantido ao Fisco, “acesso a dados bancários dos contribuintes sem necessidade de autorização judicial” [22];
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O “intercâmbio ou compartilhamento de informação sigilosa” opera como um procedimento administrativo, sigiloso e de repercussão interna, é dizer, para consumação da Administração, visando reunir e sedimentar a plausibilidade da incidência da infração.
E tudo isso reforçado pelo “indício” necessário para justificar, no leito do procedimento correspondente, o pedido de quebra do sigilo de dados, medida ordenada pelo Poder Judiciário [23];
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O c. Supremo Tribunal Federal, por maioria, assim fixou o entendimento [24]: “O art. 6º da Lei Complementar nº 105/2001 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza a igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o translado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal.”.
Logo, essa medida propositiva modelada na transferência do sigilo, opera unicamente no âmbito interno da Administração Pública. Mas, como já ressaltado, a quaestio, de laboriosa resolução, abriu fundada dissidência;
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Destaque para a observância compulsória do direito ao contraditório e ampla defesa [25].
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Medidas protetivas contra eventuais abusos: O relator das ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859, ministro Dias Toffoli, adotou observações dos demais ministros para explicitar o entendimento da Corte sobre a aplicação da lei: ”Os Estados e Municípios somente poderão obter as informações previstas no artigo 6º da LC nº 105/2001, uma vez regulamentada a matéria, de forma análoga ao Decreto Federal nº 3.724/2001, tal regulamentação deve conter as seguintes garantias: pertinência temática entre a obtenção das informações bancárias e o tributo objeto de cobrança no procedimento administrativo instaurado; a prévia notificação do contribuinte quanto a instauração do processo e a todos os demais atos; sujeição do pedido de acesso a um superior hierárquico; existência de sistemas eletrônicos de segurança que sejam certificados e com registro de acesso; estabelecimento de instrumentos efetivos de apuração e correção de desvios.” [26];
Por fim, convém reprisar que o anterior RE 389808 – STF, encontra-se fustigado por Embargos de Declaração com pedido de modificação da decisão proferida, e concluso ao Relator em 09.11.2011, conforme consulta processual no site do STF em 25.04.2017.
[1] SEBASTIÃO JOSÉ LESSA, OAB/DF 11.364, é Vice-Presidente da ADPF – Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, autor dos livros: Do Processo Administrativo Disciplinar e da Sindicância, Fórum/BH/MG, 5. ed., 2009, 1ª reimpressão – 2011; Temas Práticos de Direito Administrativo Disciplinar, Brasília Jurídica, 2005 (esgotado); O Direito Administrativo Disciplinar Interpretado pelos Tribunais, Fórum, BH/MG, 2008; A Improbidade Administrativa, Enriquecimento Ilícito, Sequestro e Perdimento de Bens, Fórum, BH/MG, 2011; Direito Disciplinar Aplicado, Fórum, BH/MG, 2016; Juristas do Mundo, vários autores, Rede, Brasília-DF, vol. I, 2012, p. 125/135; Juristas do Mundo, vários autores, Rede, Brasília-DF, vol. III, 2015, p. 501/513.
RAPHAEL PEREIRA LESSA, OAB/DF 22.507, pesquisa de doutrina e jurisprudência. É advogado militante formado pela Universidade Católica de Brasília em 2004, com especialização em Direito Tributário. É pós-graduado, lato sensu, em Direito Público pelo Instituto Processus de Cultura Jurídica, com conclusão em 2007. Tem artigo publicado na Editora Plenum, nº 53, Caxias do Sul/RS, Janeiro de 2017 e Colaborador da Revista FCGP – Fórum de Contratação e Gestão Pública da Editora Fórum – Conhecimento Jurídico.
[2] Art. 5º, inc. XII, CF; art. 6º e § único, LC 105/01. Cf.: STF, RE 389808, DJe 10.05.11; STF, RE 601314, DJe. 24.02.2016; STF, ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 in Notícias STF, 24.02.16.
[3] art. 6º e § único, LC 105/01.
[4] Cf. Notícias STF, 24.02.16 – RE 389808, Pleno, maioria, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 10.05.11 e RE 601314, Pleno, maioria, Rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.16.
[5] STF, RE 601314, Rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.2916. STF, Notícias 24.02.2016.
[6] Art. 5º, inc. XII, CF. STF, RE 601314, Rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.2916. STF, Notícias 24.02.2016.
[7] Art. 6º e § único, LC nº 105/2001.
[8] Art. 5º, inc. XII, CF.
[9] C.f.: § 4°, art. 37, CF; art. 9º, caput, inc. VII, Lei nº 8.429/1992.
[10] Art. 5°, incs. XII e XXXV, CF.
[11] Mauro Roberto Gomes de Mattos. O Limite da Improbidade Administrativa – O Direito dos Administrados dentro da Lei nº 8.429/92, 2. ed., Rio de Janeiro: América Jurídica, 2005, p. 208.
[12] José Anacleto Abduch Santos, Comentários à Lei 12.846/2013, Lei Anticorrupção, Ed. Revista dos Tribunais /SP, 2014, págs. 169 e 170. STJ, REsp 664.440 MG, Rel. Min. José Delgado, DJU 08.05.2006.
[13] Fábio Medina Osório, Direito Administrativo Sancionador, Ed. RT, SP, 3ª ed., 2009, pág. 101.
[14] Art. 5º, inc. XII, CF; art. 6º e § único, LC 105/2001. Cf.: STF, RE 389808, DJe 10.05.2011; STF, RE 601314, DJe. 24.02.2016; STF, ADIs 2390, 2386, 2397 e 2859 in Notícias STF, 24.02.2016.
[15] STF, RE 389808, Rel. atual Min. Marco Aurélio, DJe 10.05.2011.
[16] Art. 6º e § único, LC nº 105/2001.
[17] STF, RE 601314/SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.2016; Notícias STF, 24.02.2016.
[18] Art. 102, § 3º, CF.
[19] art. 9°, VII, Lei n° 8.429/1992.
[20] TRF 1ª R., AG 2007.01.00.008445-7 DF, Rel. Des. Federal Tourinho Neto, DJ 15.06.2007.
[21] Art. 3º, caput, LC nº 105/2001.
[22] STF, RE 601314, Pleno, maioria, Rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.2016.
[23] Art. 5°, incs. XII e XXXV, CF.
[24] STF, RE 601314, Pleno, maioria, rel. Min. Edson Fachin, DJe. 24.02.2016.
[25] Art. 5º, LV, CF; art. 2°, caput, Lei n° 9.784/1999; STJ, MS 6478 DF, Rel. Min. Jorge Scartezzini, DJ 29.05.2000. Cf.: Sebastião José Lessa, Direito Administrativo Disciplinar Interpretado pelos Tribunais., Ed. Fórum, BH, 2008, págs. 97-134.
[26] DJe. 24.02.2016, Notícias, STF 24.02.2016.