Artigo: O refúgio indevido na migração ilegal
Milton Fornazari Junior*
As operações policiais “Big Five” e “Estação Brás”, deflagradas no ano passado pela Polícia Federal, revelaram a utilização da cidade de São Paulo como porta de entrada no continente americano para que milhares de estrangeiros migrassem ilegalmente para os Estados Unidos.
Também se verificou que organizações criminosas voltadas para essa migração ilegal, com os maiores traficantes de pessoas do mundo, haviam se estabelecido em São Paulo, de onde articulavam a viagem desses migrantes ilegais.
Constatou-se que estrangeiros, inclusive suspeitos de terrorismo, contratavam esses traficantes de pessoas ainda do exterior, por meio de aplicativos de mensagens e, após chegarem em São Paulo por via aérea, iniciavam um longa e dramática jornada terrestre até a fronteira do México com os Estados Unidos, passando por diversos países da América do Sul e da América Central.
Muitos desses migrantes ilegais eram seduzidos pelas falsas promessas dos traficantes e, ao ignorar os perigos do caminho, vinham a falecer durante o percurso por diversas causas, alguns afogados em travessias marítimas entre a Colômbia e o Panamá, outros em razão de sequestros no México e milhares por outras condições degradantes, decorrentes da extasiante jornada por quase todo o continente americano, em especial na Selva de Darien, onde os migrantes ilegais eram abandonados em floresta fechada, com onças, cobras e outros perigos.
Pois bem, o primeiro grande mistério solucionado nessas investigações foi a compreensão do porquê esses migrantes ilegais vinham para São Paulo, em vez de irem para países mais próximos do seu destino final.
Com o decorrer das investigações, identificou-se que a maioria deles solicitava refúgio no Aeroporto de Guarulhos para entrar no País e depois de alguns dias deixava o território brasileiro pela fronteira terrestre com o Peru.
Depoimentos de migrantes ilegais e confissões de parte dos traficantes de pessoas presos nas operações revelaram que São Paulo era e ainda é utilizada como o destino inicial na América por duas razões, a primeira em razão de bastar a eles terem solicitado refúgio para que a entrada no País fosse de imediato permitida, o que não ocorria em outros países da América do Sul e Central. E a segunda razão pelo fato do Aeroporto de Guarulhos ser o maior do Brasil, por onde comumente chega a maioria dos voos internacionais.
Da análise da legislação brasileira sobre o refúgio, que remonta à década de 1990, com algumas alterações na nova Lei de Migração, constata-se sua excessiva permissividade e seu anacronismo, tendo como efeito negativo o indevido e sistêmico desvirtuamento do instituto do refúgio, causando situações de extrema danosidade no convívio social e a facilitação da prática de crimes.
Para se ter uma ideia, o estrangeiro que solicita refúgio no Brasil não está obrigado a fornecer seus documentos de identidade verdadeiros e, caso apresente documentos falsos, não será punido por isso, tendo a entrada no País deferida por meio da solicitação de refúgio e com a emissão de documentos aptos ao exercício da vida civil no Brasil, como o CPF e a Carteira de Trabalho.
Assim, é plenamente possível concluir que pessoas condenadas ou endividadas em seus países de origem também possam ter vindo para o território brasileiro e aqui terem estabelecido nova vida, praticando novos crimes e utilizando-se do refúgio para obterem nova (e falsa) identidade no Brasil, evitando assim a devida punição pelos seus crimes.
De fato, basta o “refugiado” inventar um nome e um país de origem para obter o documento brasileiro chamado “Solicitação de Refúgio”, por meio do qual poderá se materializar a existência de uma identidade falsa, inclusive permitindo a emissão de um passaporte falso após o eventual deferimento do refúgio, impossibilitando assim a descoberta pela Polícia de sua identidade original.
Além disso, estrangeiros que pretendam realizar migração econômica também acabam solicitando o refúgio por este não exigir quase nenhuma formalidade, o que tem transformado o instituto em um meio hábil para fraudar as normas que autorizam a migração econômica para nosso país.
Outros refugiados no Brasil, ainda, têm retornado a seus países de férias e posteriormente reingressado no Brasil, sabendo que se forem impedidos no aeroporto, apenas terão que solicitar um novo refúgio, alegando nova perseguição, tendo assim sua entrada imediatamente autorizada.
Por fim, cabe destacar o uso do refúgio para a utilização de “mulas” (pessoas que transportam a droga) no tráfico internacional de drogas.
Situações como essas demonstram o completo desvirtuamento do instituto do refúgio, fomentando e viabilizando a prática de diversos crimes e o refúgio de criminosos em nosso território.
Em razão disso tudo, urge repensar novas medidas legislativas que sejam aptas a restabelecer o correto emprego do nobre instituto, visando possibilitar a entrada no País somente de pessoas que realmente necessitem do instituto, ou seja, que estejam efetivamente fugindo de perseguições ou de outras tragédias humanas, bem como a permitir um maior controle de entrada de estrangeiros no nosso País, impedindo a entrada de criminosos e migrantes ilegais.
*Milton Fornazari Junior, delegado de Polícia Federal em São Paulo, doutor em Direito Processual Penal e mestre em Direito Penal pela PUC-SP