Caçador de corruptos
Em conversa com o Diário da Manhã, o presidente da Associação dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), delegado Marcos Leôncio conta sobre os crimes de lavagem de dinheiro e corrupção, que a sociedade ainda não enxerga como tão grave quanto os crimes de sangue. De acordo com ele, o sistema tem que ser mais colaborativo, onde a Polícia, sociedade e imprensa devem fazer sua parte, sem espaço para individualismo e vaidades.
O assunto foi discutido em seminário, em Goiânia, nos dias 14 a 16 de março, organizado pela associação a qual Marcos preside. O seminário tem como propósito congregar e conscientizar a sociedade goiana de que é preciso união e informação no enfrentamento dos crimes, cobrando cada vez mais medidas que sejam de avanço. É por isso que o delegado Marcos Leôncio acredita que a sociedade é a principal condutora dessa cobrança e, portanto, é necessário ter conhecimento.
O delegado conta ainda que a lavagem de dinheiro, que é uma prática econômico-financeira, com fim de dissimular ou esconder a origem ilícita de bens patrimoniais ou ativos financeiros para que pareçam lícitos ou que a origem ilícita seja difícil de se provar, precisa deixar de ser vista por alguns como literalmente dinheiro lavado com água e sabão.
Outro motivo que foi relevante para o acontecimento do seminário é a necessidade dos operadores do Direito estudarem e compreenderem as inovações feitas na nova Lei de Lavagem de dinheiro.Tal lei ampliou os tipos de atos que podem ser enquadrados no crime e começou a mudar os parâmetros das decisões judiciais sobre sigilo, abrindo espaço para o acesso aos dados cadastrais durante investigações.
Diário da Manhã (DM) – Qual é o objetivo e o que o senhor espera do seminário realizado em Goiânia?
Marcos Leôncio (ML) – A ideia do seminário surgiu por conta de alguns fatores. No ano passado foi alterada a lei de lavagem de dinheiro, no mês de julho, quando o Congresso Nacional aprovou a Lei 12.683, que modernizou a nossa legislação no combate aos crimes de financeiros. E, logo em seguida, houve o julgamento da Ação Penal 470, que é o Mensalão, pelo Supremo, onde esse tema da lavagem de dinheiro, da corrupção, foi bastante discutido. Em Goiânia, tivemos algumas operações de repercussão aqui da Polícia Federal, como a operação Vegas, operação Monte Carlo. Então, resolvemos realizar um seminário aqui, para debater as inovações, as novidades, tanto da nova lei de Lavagem quanto do julgamento do Mensalão, e o que a gente pode esperar para o futuro desse julgamento e dessa nova lei. Nos seminários, juízes, delegados, promotores, advogados, estudantes de Direito têm a oportunidade de mostrar a sua ótica sobre a lei, as experiências no Brasil no combate à corrupção. Esse evento é para reflexão e divulgação, já que a população não conhece muito bem esse tipo de criminalidade, a criminalidade econômica, a lavagem. Esses tipos de organizações, que são mais sofisticadas, não fazem parte do dia a dia da população. Até pouco tempo, a população nem ouvia falar sobre a expressão laranja.
DM – Qual a melhor forma da sociedade passar a ter conhecimento do assunto?
ML – Com seminários dessa natureza, com a imprensa, redes sociais. O enfrentamento à criminalidade econômica organizada precisa ser difundida. Não é algo só do Ministério Público, da Polícia, do Judiciário, ela requer uma mudança cultural, uma educação do País, no Brasil. E isso a gente só vai conseguir com divulgação nos mais variados meios, dizendo que tão nocivo é o criminoso violento, chamado de crime de sangue, quanto o colarinho branco, aquele que pratica crimes de desvios de recursos públicos, que faz lavagem de dinheiro, que não paga os impostos. No Brasil, ainda temos uma cultura de achar que essas pessoas que convivem na sociedade e nas colunas sociais são empresários, ao invés de associá-las aos criminosos comuns, que a população identifica.
DM – E quanto à corrupção?
ML – Sobre a questão da corrupção, temos que mostrar que não há tolerância para os corruptos. A população não pode achar que a prática é natural, porque essa prática vai impedir o Brasil de ser desenvolvido. Existe uma pesquisa que diz que, no Brasil, 2% do PIB se perde por conta da corrupção; um dinheiro que não vai pra merenda escolar, pra obra social, ele mata, prejudica tanto quanto o uso de droga. Isso requer uma mudança cultural até mesmo entre nós que lidamos com esses crimes. A Polícia tem que se especializar mais, se capacitar mais, principalmente porque não é um crime fácil, tem que entender de mercado, de economia, de câmbio, de paraíso fiscal. O Ministério Público tem que trabalhar junto e não de forma isolada e separada. O juiz tem que ter uma postura de vanguarda, de decidir de forma que atenda à sociedade, e a população tem que cobrar.
DM – Qual é o papel da população? A partir do momento que ela toma conhecimento, pode colaborar?
ML – Com certeza, o caso do Mensalão, por exemplo, representa bem o papel da sociedade. Tivemos uma sociedade cobrando dos órgãos; cobrando uma decisão nas redes sociais, imprensa cobrindo em tempo real. Houve uma informação que gerou cobrança, então, houve uma resposta do Supremo, do Ministério Público, da Polícia, e isso não seria possível sem uma sociedade com uma opinião pública mais crítica. Estamos tendo ativismo muito forte nas redes sociais, mas precisamos desse ativismo também nas ruas.
DM – Quanto à lei, que teve uma alteração, você diria que antes era muito branda? Quais são os pontos positivos da mudança?
ML – Essas leis têm gerações, elas vão sofrendo processos de evolução. Como esse tipo de criminalidade é uma criminalidade muito sofisticada, ela vai se moldando para escapar da lei. Antes a lei de lavagem dizia que para haver lavagem, o crime antecedente devia estar em um rol taxativo, ou seja, só podia ser os crimes A, B, C, D e E, então, havia uma lista de crimes que antecediam a lavagem. A vantagem dessa lei, que outros países já adotaram, é que não tem lista taxativa. Qualquer crime antecedente poderá ser objeto de lavagem. Isso é um avanço. E outro avanço é a alienação de bens antecipada. Os crimes econômicos não são combatidos com cadeia, são combatidos onde mexe com a organização criminosa, que é patrimônio, dinheiro, bem. O importante é localizar esses bens, rastrear, sequestrar, bloquear, alienar e recuperar. É nisso que as organizações sentem e essa lei garante essa alienação antecipada, então, eu encontro o bem, posso vender esse bem, esse dinheiro pode ser convertido numa ação do Estado, exatamente para combater lavagem, além de perder dinheiro, esse dinheiro pode ser convertido contra ele. Outra vantagem é a troca de informação, que determina que os órgãos passem a fornecer informações a um órgão encarregado, chamado aqui no Brasil de Coaf – Conselho de Controle de Atividades Financeiras –, que fica monitorando se há enriquecimento suspeito, operações suspeitas. Com isso, o Coaf informa à Polícia, para dizer que detectou algum movimento deste tipo. E se você se recusar a fornecer informações, o Coaf agora pode aplicar multas muito maiores, subiu para quase R$ 200 milhões. A lei traz a requisição de dados e, assim, a Polícia e o Ministério Público podem solicitar dados cadastrais. Então, a lei traz mais instrumentos de enfrentamento da lavagem e tem uma preocupação com as técnicas de investigação.
DM – Quais são as principais fontes de lavagem de dinheiro?
ML – Hoje ela é dinâmica. Tem lavagem de dinheiro no futebol, no mundo das apostas. Na realidade de Goiás tem o agronegócio, a indústria imobiliária, a questão religiosa, a corrupção do setor público, terrorismo, o tráfico, os políticos.
DM – Tem como dizer que no Brasil há uma maior incidência em alguma dessas áreas?
ML – Seria por empirismo, não temos como dizer especificamente, mas eu acredito que em obras públicas seria onde mais fazem lavagens. Nós temos a questão eleitoral, nas campanhas tem o político e o empresariado, então, com certeza, o setor público e os interesses do setor privado são as grandes fontes de lavagem do País.
DM – E por que, mesmo as pessoas sabendo que têm consequências e que podem ser descobertas, continuam cometendo esse crime?
ML – A questão é que, infelizmente, podemos dizer que, nesse caso, o crime ainda compensa. A prisão não é o que preocupa essas pessoas; a preocupação é com o patrimônio delas e nós temos tido dificuldades de recuperar esses recursos, temos pessoas condenadas que nunca conseguimos recuperar. Um exemplo é o Paulo Maluf, uma pessoa que tem vários processos que, para o público, notoriamente é uma pessoa que lavou dinheiro, mas que, até hoje, nós conseguimos recuperar muito pouco, por conta de grau de recursos, falta de cooperação entre os órgãos, falta dessa cultura mais de vanguarda.
DM – Então, o que ainda falta para combater o crime financeiro?
ML – O Brasil precisa de uma legislação mais avançada, de um Judiciário mais progressista. O sistema é feito para não permitir essa punição, porque os crimes econômicos envolvem os sistemas financeiros, grupos poderosos economicamente e politicamente, e esses grupos têm suas forças de influência, eles influenciam a indicação de membros do Judiciário, do Ministério Público, eles corrompem, eles financiam campanhas, eles elegem políticos. É um sistema que, de certa forma, não quer se deixar modificar. Por que até hoje o Brasil não fez uma reforma política? Por que não se muda o financiamento das campanhas? Por que a legislação brasileira ainda não acompanhou o que há de mais avançado no mundo a fora? Por que decisões de tribunais e investigações feitas na base são anuladas nos tribunais superiores? A resposta é que tudo isso faz parte de um sistema que é feito realmente para proteger aqueles mais poderosos. Nós não temos nenhum caso de empreiteira condenada no Brasil, à exceção da Gautama. A esperança desse seminário é que comecemos a ver que empreiteiras precisam ser condenadas para ver se muda a cultura. Nós tivemos o Banco Rural, Banco Santos, Banco Cruzeiro do Sul, é preciso dizer que da mesma forma que um político importante foi condenado, um banco foi condenado, quem sabe uma empreiteira é condenada. A gente tem que dizer que isso tem que mudar, porque se não mudar, o País não vai se desenvolver, mas não temos a ilusão de atingir a todos, porque eles estão emprenhados na estrutura do Estado. Eles estão lá para se defender e ter um sistema feito para protegê-los.
DM – Para qual caso você daria destaque em Goiás?
ML – A operação Monte Carlo, que reflete um pouco desse seminário. Tem um contraventor, visto como empresário, e que tem uma relação social com políticos, ajuda em campanhas, que tem relações de tráfico de influência com o governo, tem laranjas. Então, é um exemplo que se adéqua perfeitamente ao espírito do seminário. Os goianos conseguem se colocar na situação e ver que ele foi preso, mas está solto. Tem um leque de relações com pessoas em todo o Estado que, agora, fazem de conta que não o conhecem e também desejam que ele não fale muito, temos o caso do contador dele. É um pouco da hipocrisia da nossa sociedade, de que até a algum tempo tirava foto com ele porque era um empresário.
DM – Você acredita que, nesse caso, vai haver punição e fim do esquema?
ML – Eu acredito muito que o sistema é seletivo, ele se livra ao longo do caminho de algumas pessoas que se tornam desnecessárias. Então, acredito que o Carlos Cachoeira, para o sistema, é hoje uma figura descartável. Eu não acredito que ele venha recuperar todo o poder que tinha antes, mas acima dele sempre vai haver gente mais importante. O sistema vai se descartando, aqui e acolá vai cair um Zuleido Veras, vai cair algumas pessoas que entre “eu e aquele”, é melhor entregar “aquele do que à mim”. É quase um pacto de convivência, onde um protege para que o outro não o denuncie. Podemos ver isso no Mensalão. O Marcos Valério sempre chantageando, dizendo que tinham que o proteger, senão ele falava. E, aí, você percebe que não há direita e esquerda, governo e oposição. Os esquemas criminosos são os mesmos utilizados, seja por quem está no governo ou na oposição, seja PT ou PSDB. O Marcos Valério operava para os dois no mesmo sistema. E outra coisa que percebemos é que não existe sistema só para bancário e empresário. O mesmo esquema que eles utilizam para não pagar imposto, para desviar recursos públicos, o terrorista usa, o traficante de drogas usa. É um mundo sujo, que não existe essa história de joio e trigo, todos estão enveredando para um mundo, que é um mundo ruim. E o mundo todo combate porque é um mundo perigoso, a lavagem de dinheiro para as organizações terroristas, para as organizações de tráfico internacional é um instrumento muito útil, então, é preciso enfrentar tanto esses crimes mais violentos, inaceitáveis, quanto aqueles que utilizam esse instrumento como empresários do colarinho branco.