Carta Capital chama Ministério Público de “um novo ninho de arapongas”
Um novo ninho de arapongas
O Ministério Público abriga militares especialistas em espionagem
Há cerca de um ano, exatamente em 9 de fevereiro de 2011, uma portaria assinada pelo general Lúcio Mário Góes, chefe da Diretoria de Assistência Social do Exército, encerrou uma jornada de 13 meses do capitão Henrique Antônio Olheira dos Santos, um especialista em espionagem da força terrestre.
Em dezembro de 2009, Santos havia sido nomeado, por indicação do comando do Exército, assessor da Divisão de Contrainteligência “para assuntos de controle de pessoal” do chamado Sistema de inteligência do Exército. Trata-se do setor responsável pela elaboração do incrível manual de contrainteligência no qual são apontados como inimigos da pátria todos os civis brasileiros, além de todos os estrangeiros do planeta, conforme reportagem publicada por Carta Capital em outubro de 2011.
Pouco se sabe sobre a misteriosa passagem do capitão Henrique dos Santos pelo Centro de Inteligência do Exército (CIE), onde ficou lotado até ser exonerado, pouco mais de um ano depois, pelo general Góes. A experiência no campo da arapongagem deu-lhe, porém, credenciais para conseguir um emprego inesperado cinco dias depois de demitido do Exército. Em 14 de fevereiro de 2011, o militar foi contratado para trabalhar no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão de fiscalização e controle externo dos ministérios públicos federal e estaduais. Significa dizer que o secretário-geral do conselho, o procurador Adécio Leite Sampaio, instalou no órgão um ex-espião do Exército com acesso às informações funcionais e pessoais de todos os procuradores da República e promotores estaduais do Pais, além de processos e sindicâncias internas sob sigilo.
A chegada do capitão Santos ao CNMP não foi uma ação isolada. Com base em rastreamento no Diário Oficial da União (DOU), foi possível localizar ao menos outras seis contratações de ex-oficiais do CIE no Ministério Público, todos especializados em ações de inteligência e contrainteligência. Na sede da Procuradoria-Geral da República (PGR), sob o comando do procurador-geral Roberto Gurgel, está o coronel Pedro Busch Neto, contratado em 30 de julho de 2010. Busch Neto é um super especialista em arapongagem, a ponto de ter sido diretor do Departamento de Operações de Inteligência do CIE, o setor mais importante e sigiloso de missões de espionagem do Exército. De lá, o coronel comandava as operações secretas da força terrestre no Brasil e no exterior.
Antes de ir trabalhar na PGR, o coronel Busch Neto havia se aproximado do Ministério Público por intermédio do atual secretário-geral da PGR, o procurador Lauro Pinto Cardoso Neto, um ex-oficial de Exército apontado dentro da força como colaborador do CIE. O coronel ministrou, entre março de 2009 e março de 2010, na Fundação Escola Superior do Ministério Público, em Belo Horizonte, o "Curso de Inteligência de Estado e Inteligência de Segurança Pública com Inteligência (sic)", de um ano de duração. O custo por aluno foi de 8,6 mil reais. Terminado o curso, acabou convidado para assumir a chefia da segurança institucional da PGR. Com ele levou outro oficial do CIE, o tenente-coronel Camel André de Godoy Farah, para ser seu segundo em comando.
Carta Capital tentou, por três semanas, entrevistar o procurador Cardoso Neto para saber as razões de ele ter decidido contratar, e por quais critérios, um especialista em ações de espionagem para controlar a segurança interna da PGR. De acordo com a assessoria de imprensa do órgão, o secretário-geral não teve, em nenhum momento, uma brecha em sua concorrida agenda para atender à solicitação. Pena. Seria uma forma de explicar sobre outra especialidade do coronel Busch Neto: as operações do analist notebook I2.
O analist é um poderoso software capaz de cruzar dados e interpretar padrões de relacionamento entre as informações a partir de diferentes tipos de arquivos ao mesmo tempo. Em seguida, pode indicar o relacionamento social entre indivíduos listados em banco de dados, registros telefônicos e extratos financeiros. É utilizado pela CIA, nos Estados Unidos, e pelo Mosad, em Israel, para produzir informações sobre suspeitos de terrorismo. No Brasil, até onde se sabe, apenas a Polícia Federal costuma ter permissão para operá-lo. Qual a serventia de um especialista nesse tipo de software na PGR é um mistério.
Tudo indica que o coronel Busch Neto está no topo de uma rede de inteligência montada para preparar o Ministério Público contra lobby contrário à prerrogativa dos procuradores e promotores de realizarem investigação. É uma briga antiga, iniciada a partir da Constituição de 1988, mas ainda baseada em interpretações jurídicas diversas. Quem vai definir a questão é o Congresso Nacional, onde tramita a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 37, de autoria do deputado Lourival Mendes (PTdoB-MA), também delegado da Polícia Civil maranhense. Não se sabe até onde essa rede está disposta a ir-se é que já não foi.
Também professor no curso de "inteligência com inteligência" da Fundação Escola Superior do Ministério Público, em Minas Gerais, outro coronel aportou em Brasília sob o mesmo manto de gerenciador de segurança institucional. Ex-oficial do CIE, Arismar Luz Filho, ex-subsecretário de Segurança Pública do Espiríto Santo e da Bahia, estão operações de inteligência, operações especiais, entrevista e interrogatório. O militar é ainda expert em sequestros e negociações de reféns, graças a um curso feito no FBI, a polícia federal dos Estados Unidos.
Igualmente especialistas são outros dois contratados: os coronéis Jodelmir Pereira de Souza e Diógenes Dantas Filho. Ambos foram ex-oficiais do CIE a acabaram chamados para cuidar da segurança institucional e do bem-estar dos servidores do Ministério Público Militar, em Brasília. Apesar do nome, o MPM não é um órgão de caserna, muito menos tem ligação funcional com as Forças Armadas. De acordo com a assessoria de imprensa do MPM, a dupla foi contratada para executar o planejamento de segurança local, mas o coronel Dantas Filho deixou o cargo há seis meses, não se sabe por qual motivo.
O último da lista é o coronel Jorge Alberto Forrer Garcia, lotado no Ministério Público Federal do Paraná. O coronel Garcia também veio do CIE, está há dez anos na reserva, mas não perdeu o viés ideológico da ditadura. É um contumaz articulista de sites de extrema-direita na internet, entre os quais aqueles frequentados por defensores da tortura de presos políticos, quando não pelos próprios torturadores. Coube a Garcia, por exemplo, redigir e divulgar pela internet uma longa e confusa carta, cheia de ofensas e circunlóquios incompreensíveis, supostamente escrita em desagravo à reportagem de Carta Capital sobre o manual de contrainteligência do Exército.
A presença ostensiva de ex-oficiais do CIE no Ministério Público, sob o pretexto de executar planos de segurança interna, tem potencial para levar a PGR a viver uma crise semelhante à desencadeada em 2007, quando o então procurador-geral da República Cláudio Fontelles adquiriu o Guardião, um complexo sistema de interceptações telefônicas com capacidade para monitorar centenas de ligações ao mesmo tempo, cujo uso não é autorizado ao MP. O equipamento, usado pela Polícia Federal e algumas polícias estaduais, é um software com funções automáticas como a de rastrear qualquer linha que se conecte com o telefone originalmente interceptado. A máquina de grampear teve de ser compulsoriamente doada à PF, em fevereiro de 2008, depois de o assunto vir a público.
Na Câmara dos Deputados, a PEC 37, que limita os poderes de investigação do Ministério Público, foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça logo poderá ser votada em plenário. À frente do projeto, além do autor, Lourival Mendes, há outros dois delegados federais empenhados em aprovar o texto, os deputados Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) e Fernando Francischini (PSDB-PR), além do deputado Esperidião Amim (PP-SC). Para evitar um conflito direto com o MP, essa frente de parlamentares pensa em criar um mecanismo de exceção que permita a procuradores e promotores, em casos específicos, iniciar uma investigação por conta própria, sobretudo quando se tratar de crimes praticados por autoridades às quais a polícia esteja subordinada.