Como aprendemos a punir

28 de maio de 2013 11:56

A condenação dos mensaleiros é resultado de leis e mudanças institucionais que tornaram a vida dos corruptos menos tranquila

No começo da tarde do dia 14 de junho de 2005, o deputado Roberto Jefferson assomou à sala do Conselho de Ética da Câmara, empertigou-se numa cadeira, ligou o microfone – e entregou metade da República. “É voz corrente em cada canto desta Casa, em cada fundo de Plenário, em cada gabinete, em cada banheiro, que o senhor Delúbio, com o conhecimento do senhor José Genoino, sim, tendo como pombo-correio o senhor Marcos Valério, um carequinha que é publicitário lá de Minas Gerais, repassa dinheiro a partidos que compõem a base de sustentação do governo, num negócio chamado mensalão”, disse Jefferson, trespassando, com as palavras e os olhos, os deputados ali reunidos.

As quase sete horas que se seguiram naquela sala da Câmara, transmitidas ao vivo, mudaram a história política do país. O governo do PT comprara o apoio de deputados.

Jefferson revelou, além do nome do operador do esquema, outra pista preciosa para quem quisesse investigar o crime: o dinheiro sujo era entregue numa agência do Banco Rural no Brasília Shopping, pertinho do Congresso. A poucos quilômetros dali, na sede da Polícia Federal, o delegado Luís Flávio Zampronha, ainda um novato na PF, acompanhava atentamente o depoimento de Jefferson. Zampronha não perdeu tempo. Reuniu a equipe e disse: “Vamos agora para o banco”.

Zampronha, apesar de inexperiente, tivera um bom treinamento, como os demais policiais de sua geração. Sabia que, com a confissão de Jefferson, as possíveis provas do crime corriam risco imediato. Extratos bancários poderiam sumir, testemunhas poderiam ser subornadas. Era preciso agir com rapidez. Em poucas horas, os policiais obtiveram o registro de entradas dos deputados na agência do Rural, localizaram testemunhas que haviam organizado a entrega do dinheiro e, por fim, descobriram que os cheques de Marcos Valério vinham de Minas Gerais.

A história contada por Jefferson começava a ser confirmada com provas – provas que, acumuladas em anos de investigação, viriam a resultar na condenação, pelo Supremo Tribunal Federal, de 25 réus do caso, o ex-ministro José Dirceu e Jefferson, entre eles, no julgamento mais importante da história recente do país. Um julgamento cujo desfecho demonstrou que o Brasil, apesar de solavancos, começou finalmente a levar a sério a tarefa de punir seus corruptos.

Um julgamento que não seria possível há 15 anos. Ele e outras condenações recentes por corrupção e crimes correla-tos são produto de leis mais modernas e do amadurecimento das instituições que combatem crimes no Brasil, sobretudo nos mais altos escalões. Até a virada do século, a PF não tinha estrutura, treinamento nem pessoal suficiente para fazer frente à bandidagem. O Ministério Público Federal, a quem cabe supervisionar a produção de provas e oferecer, com base nelas, denúncias na Justiça, vivia do voluntarismo de algumas estrelas. Havia pouco critério e método na atuação dos procuradores. A Justiça Federal, a quem recai a difícil responsabilidade de avaliar a consistência das provas e da argumentação jurídica dos procuradores, tinha poucos juízes e muitos processos. Era uma Justiça refém da proverbial cultura da impunidade brasileira, que tendia a punir criminosos pobres e livrar criminosos ricos.

Nos últimos 15 anos, houve progressos. A começar pela PF, do delegado Zampronha. Ele ampliou a busca por melhores quadros. Promoveram-se concursos. Ofereceram-se bons salários. “Os concursos injetaram oxigênio na PF”, afirma Marcos Leôncio, presidente da Associação Nacional de Delegados de Polícia Federal. “Houve também uma mudança de foco. Antes muito voltada ao combate do tráfico de drogas, a PF passou a dar atenção à corrupção.” A partir de 2003, com o governo Lula, a profissionalização da PF acentuou-se.

Se a boa investigação de Zampronha no mensalão revela uma ironia, mostra, também, a consolidação da democracia brasileira. O professor Rogério Arantes, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, estudou 600 operações da PF, feitas desde 2003. Ele catalogou mais de 50 tipos de crimes. A corrupção ficou no topo da lista: é o principal delito em 67% das operações.

Os avanços do Ministério Público, ao menos na cúpula dele, na Procuradoria Geral da República, devem-se também, em larga medida, a uma decisão tomada no governo Lula. Até 2003, a PGR era uma instituição enfraquecida pela tibieza de procuradores como Geraldo Brindeiro, chefe do Ministério Público durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Brindeiro era conhecido como “engavetador-geral” da República. Atuava como subordinado do governo FHC. Quando surgiram evidências de que o governo tucano comprara votos para aprovar a emenda que permitiria a reeleição de FHC, Brindeiro tratou de engavetar o caso. Lula, ao respeitar a eleição interna dos procuradores e nomear o mais votado, aumentou substancialmente a independência da PGR – e garantiu que, dois anos depois, Antonio Fernando de Souza virasse chefe do Ministério Público.

O mesmo Antonio Fernando que, em seguida, não vacilaria em comandar a equipe de procuradores que, com Zampronha, investigaram a fundo o mensalão. Em 2006, Antonio Fernando entregou ao Supremo a denúncia contra 40 réus do mensalão. Seguiram-se outras denúncias contra políticos de peso, como o presidente do Senado, RENAN CALHEIROS, denunciado recentemente por Roberto Gurgel, o atual procurador-geral. Não à toa, a PGR é uma das instituições mais poderosas da República. “Nos últimos anos, o Ministério Público, e também a polícia, foi duramente testado pelo Judiciário na questão da prova convincente”, afirma Alexandre Camanho, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. “Essas duas instituições se tornaram obcecadas pela produção de uma boa prova.”

O Supremo também mudou – em sua composição e capacidade de julgar casos complexos. A corte recebeu ministros incomodados com a tradição de não condenar políticos poderosos. Em 2001, uma emenda à Constituição permitiu ao tribunal processar deputados e senadores diretamente, sem precisar pedir autorização ao Congresso. Sem ela, o julgamento do mensalão, que envolvia deputados, não seria possível. No julgamento, os ministros inovaram ao aplicar a teoria do domínio do fato, para condenar o ex-ministro Dirceu como chefe da quadrilha do mensalão. Pela teoria, aplicada a grandes organizações criminosas, o mandante é julgado também como autor, não apenas como um participante. Para isso, não é preciso que ele tenha deixado uma impressão digital de que cometeu o crime, mas apenas evidências de que comandou a ação.

Há, contudo, muito a avançar no combate à corrupção. Um réu ainda dispõe de mais de 30 opções para tentar trancar investigações ou mudar sentenças em quatro instâncias. Basta ter dinheiro para pagar bons advogados. “É preciso buscar meios para garantir que a condenação seja cumprida, e com rapidez”, diz o juiz federal Nino Toldo, presidente da Associação Nacional de Juizes Federais. Enquanto trabalha-se para que esses avanços não demorem, investigadores como o delegado Zampronha permitem supor que estamos mais preparados para o próximo Roberto Jefferson.