Delegada de Polícia Federal: mulher, antes de tudo
Das 24 mulheres da última turma de delegados do concurso público da PF, 19 reforçam o time de 336 associadas ativas (230) e aposentadas (106) da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF). Foram 172 delegados e delegadas que se formaram, em novembro de 2019, na Academia Nacional de Polícia (ANP). De lá pra cá, a ADPF vem recebendo a adesão dos novos colegas – já são 120 novos associados da última turma da ANP, dentro do universo de 2,2 mil, entre ativos e aposentados.
“Todos são muito bem-vindos. A ADPF é a casa do delegado de Polícia Federal. É a legítima representante da nossa classe e, a participação de cada associado é importante para fortalecermos as lutas pelos direitos da categoria, seja no Congresso Nacional, no Executivo ou no Judiciário”, avisa o presidente da ADPF, Edvandir Felix de Paiva.
Mesmo em número pequeno, as delegadas federais vêm ocupando espaços que, até pouco tempo, eram somente de homens, dentro da PF. É o caso de seis delegadas que hoje estão no comando de superintendências regionais: Diana Calazans Mann (Acre); Cecília Silva Franco (Tocantins); Cassandra Ferreira Aves Parazi (Maranhão); Mariana Paranhos Calderon (Piauí); Carla Patrícia Cintra (Pernambuco) e Tânia Maria Matos Ferreira Fogaça (Rio Grande do Norte).
Outros cargos estratégicos ocupados por mulheres na PF são o de coordenadora de Recursos Humanos (Juliana de Sá Pereira Gonçalves Pacheco); diretora Executiva Substituta (Silvia Amelia Fonseca de Oliveira) e chefe da Academia Nacional de Polícia (Vanessa Gonçalves Leite de Souza).
A superintendente regional da PF no Acre, delegada federal Diana Calazans, por exemplo, acaba de reforçar sua gestão com mais duas mulheres: Ana Telma (delegada regional Executiva) e Larissa Magalhães (delegada regional de Combate ao Crime Organizado). Com mais três do último concurso, agora são seis mulheres no Acre.
Já nas Diretorias Regionais da ADPF, cinco são comandadas por mulheres, do total de 27: Esmeralda Aparecida de Oliveira (Goiás); Luciana Paiva Barbosa (Paraíba); Polyana de Medeiros Fernandes (Rio Grande do Norte); Paula Dora Aostri (Santa Catarina) e Tania Prado (São Paulo).
Para homenagear as associadas pelo Dia Internacional da Mulher, celebrado em 8 de março, a ADPF ouviu quatro delegadas federais para mostrar a visão delas sobre vários aspectos da vida familiar, social e profissional de mulheres que atuam como delegadas de polícia.
“Mulher, não se limite a rótulos. Somos capazes de exercer todas as tarefas necessárias ao bom desempenho dos nossos cargos”.
Diana Calazans – superintendente regional da PF/AC
Diana Calazans Mann
Natural de São Borja (RS), Diana completará 17 anos como delegada de Polícia Federal, em setembro 2020, e está há dois anos como superintendente regional da PF, no Acre, na Região Norte. Antes de assumir a superintendência, foi chefe da Divisão de Direitos Humanos/Coordenação-Geral de Defesa Institucional/Diretoria de Investigação e Combate ao Crime Organizado, em Brasília (DF). Além do Distrito Federal, atuou nos estados do Rio Grande do Sul e Rio Grande do Norte. E, antes de ser delegada, foi assessora do Ministério Público do Rio Grande do Sul.
A filha e o marido moram com ela em Rio Branco. Pais e irmãos moram em outros estados, mas Diana sempre faz um esforço para reunir toda a família, no final do ano. Para ela, encontrar o equilíbrio entre o trabalho na Polícia Federal e a família nem sempre é fácil.
Para Diana, não há distinção de gênero para se exercer o trabalho de delegado de polícia, mas momentos e dificuldades pontuais são passíveis de serem superados, como na época em que ela estava grávida e foi escalada para uma operação. “Antes, não havia uma proteção à policial gestante e lactante, mas isso já foi corrigido. Hoje, elas estão mais protegidas, não podendo ser escaladas para missões e sobreavisos nesse período. Isso foi uma grande evolução no âmbito da Polícia Federal”, conta.
Também houve casos em que se sentiu discriminada por ser mulher, percebendo certo desconforto de homens subordinados a ela. “Mas foi possível superar”, lembra. Isso porque, no caso do serviço público federal, a delegada lembra que existe igualdade de direitos garantida em lei. As promoções são por tempo de serviço, de modo que as mulheres estão protegidas de serem discriminadas quanto à ascensão funcional.
Mas, segundo ela, existe uma diferença na hora de oferecer oportunidades em cargos de gestão, porque as mulheres, em geral, não são convidadas. Diana fala que os superiores hierárquicos partem do pressuposto de que a mulher não estará interessada e as descartam sem mesmo perguntar.
“Sabemos que, na prática, muitas recusam esses convites em face das dificuldades da dinâmica familiar. É mais raro o homem acompanhar a mulher que decide se dedicar à carreira e precisa mudar de cidade ou estado. Mas, isso não pode ser encarado como regra, pois muitos homens também declinam de convites que envolvem mudanças de endereço pelos mesmos motivos”, avalia.
Diana Calazans observa uma procura menor nos concursos da PF, pelas mulheres. “Talvez fosse o caso de se informar a possíveis interessadas em ingressar na carreira de que os direitos das mulheres são respeitados no âmbito da Polícia Federal e que é um bom lugar para se trabalhar, tanto para o homem quanto para a mulher”, afirma.
Para a superintendente, o cargo de delegado federal não é uma profissão fácil. Ela já chegou, por exemplo, a fazer tratamento psiquiátrico depois de passar por situações de estresse e ansiedade. “Com isso, aprendi que somos humanos e que precisamos ter cuidado com a nossa saúde, pois somos insubstituíveis somente para nossas famílias. Às novas colegas diria para não se limitarem aos rótulos, somos capazes de exercer todas as tarefas necessárias ao bom desempenho dos nossos cargos. E, para evitar a estafa, manter a atividade física é essencial”, orienta.
Em relação à violência contra a mulher, a superintendente afirma que é preciso combater por meio da repressão policial, com mais apoio às delegacias de proteção à mulher (mais recursos materiais e humanos); ampliação dos projetos das patrulhas Maria da Penha, que já existem em alguns lugares; educação dos policiais para a proteção à vítima, uma vez que a maioria dos policiais são homens; e ampliação das casas de acolhimento.
“Eu mesma já investiguei casos de mulheres que foram vítimas de tráfico de pessoas e de exploração sexual infantil. Aqui no Acre tivemos a oportunidade de apoiar a Polícia Civil na investigação de um caso de feminicídio por meio da realização de uma perícia técnica que foi fundamental para a identificação do autor do crime, no caso, um policial militar com quem a vítima tinha um relacionamento amoroso extraconjugal e pai do filho que a vítima estava esperando. O autor do crime foi condenado. Foi gratificante poder apoiar esse caso”, lembra.
Segundo a delegada federal, a violência contra a mulher, aquela que ocorre dentro dos lares ou que é perpetrada por ex-companheiros, é reflexo de uma construção cultural que permite aos agressores ignorarem a condição humana das mulheres, tratando-as como objeto e propriedade. “Daí a importância de se construir a cultura da não-violência – principalmente, com a participação dos homens – e, uma nova sociedade, na qual a mulher seja considerada cidadã integral”, explica. Diana afirma que nem mesmo as mulheres que atuam na segurança pública estão livres da violência. “Existem muitos casos de mulheres policiais vítimas de agressões e de feminicídio. Estamos todas inseridas no mesmo caldo cultural”, analisa.
“As organizações que reconhecem os talentos para além do gênero, estão mais amadurecidas”.
Carla Patrícia Cintra – superintendente regional da PF/PE
Carla Patrícia Cintra
Nascida em Recife (PE), Carla tem 43 anos de idade, dos quais, 14 são como delegada federal. Em dezembro de 2019, ela assumiu a Superintendência Regional da PF, em Pernambuco, onde havia chefiado diversos setores da instituição, depois de atuar como escrivã de Polícia Federal por seis anos. Antes de assumir a superintendência, estava cedida ao governo de Pernambuco, no qual atuou como corregedora-geral da Secretaria de Defesa Social.
É casada há 20 anos e tem três filhos. Mesmo com a rotina de policial, não abre mão de atividades de lazer com a família, pois considera essencial para o bem estar da mente, dada a difícil missão de se dividir entre profissional, mulher e mãe. “A divisão de tarefas não é compartilhada de forma equânime. Tanto é assim, que estudos demonstram que, considerando os afazeres domésticos, a mulher tem uma jornada extraordinária em torno de oito horas semanais a mais que os homens”, constata a delegada.
Segundo Carla Patrícia, enquanto esse desequilíbrio cultural não for equacionado, será mais difícil para as mulheres ocuparem os espaços profissionais de comando, o que não invalida a capacidade delas de desempenhar as mais diversas funções. “Podemos, ao mesmo tempo, ser profissionais de destaque e mães exemplares”, afirma. Quanto ao fato de ser delegada e mulher, especificamente para o desempenho das atribuições do cargo, não sente dificuldade, nem diferença por ser mulher.
A única vez que sentiu seu direito enquanto mulher e mãe ser relativizado foi na semana seguinte a seu retorno da primeira licença maternidade. Ela foi escalada para operações policiais e sobreaviso. O resultado – além das vezes em que, entre um flagrante e outro, seu filho precisou ir à polícia se alimentar – foram cinco tratamentos à base de antibióticos nos meses seguintes à volta ao trabalho. Felizmente, lembra, graças à atuação do diretor de Gestão de Pessoal, Delano Cerqueira Bunn, a questão da maternidade passou a ser mais bem cuidada na PF.
“A discriminação, seja de que tipo for, é um comportamento extremamente estreito”, avalia a superintendente. Para ela, a ideia de superioridade baseada no gênero, seja através do conceito de machismo ou de feminismo, são julgamentos empobrecidos que apequenam a espécie humana. “Sob o aspecto institucional, as organizações que reconhecem os talentos, para além do gênero, estão mais amadurecidas”, diz Carla Patrícia.
De acordo com ela, a igualdade de oportunidades não significa não aceitar as diferenças. “Estas são inegáveis do ponto de vista físico e hormonal. Todavia, a socialização e o preconceito, estigmatizam comportamentos e abafam talentos”, diz. Ela recorre a um exemplo conhecido: “O homem, quando é mais contundente em determinada opinião, é tido por aguerrido. A mulher, quando é mais enfática em outra opinião, é percebida como exagerada ou mandona”.
Para a delegada, a violência contra a mulher é “algo de uma selvageria indescritível” que atinge todas as classes sociais e tem origem cultural, tanto em relação ao sentimento de posse, quanto à repetição de comportamentos vivenciados em família. “Também por questão cultural, a mulher tende a relativizar essa violência e considerar normal situações abusivas”, explica. Para mudar essa realidade, ela acredita no trabalho em rede: o poder público atuando no acolhimento e tratamento às vítimas e na punição dos infratores e a iniciativa privada abrindo as portas do mercado de trabalho.
“Acho que a mulher que tem seu próprio espaço social e profissional está mais protegida, ainda que não atue na segurança pública. Essa valorização da própria identidade, do espaço individual é que protege as mulheres”, avalia Carla Patrícia.
“A mulher pode fazer tudo o que os policiais fazem e, não precisa ter um tratamento diferente para isso”.
Daniela Schoneweg – delegada de Polícia Federal/RO
Daniela Lugli Schoneweg
Natural de São Bernardo do Campo (SP), Daniela tem 37 anos e atua como delegada da PF há seis anos, em Porto Velho (RO), no Norte do País, onde mora com o marido, também policial. Sempre que pode, visita os pais na sua cidade natal, tarefa complicada por conta da distância e, principalmente, dos preços das passagens aéreas.
Conciliar o trabalho com as necessidades do dia a dia é um pouco difícil para ela, obrigada a fazer as tarefas domésticas após o expediente ou durante o horário de almoço. “Fico eternamente me policiando para tentar, pelo menos, arrumar uma horinha por dia para tentar cuidar de mim, mas nem sempre consigo”, conta. Aos finais de semana, quando não estão cansados, ela e o marido costumam fazer um churrasco com os amigos para relaxar o corpo e a mente.
Daniela afirma encarar o trabalho de delegada federal como qualquer outro. “Nunca me senti incapaz por ser mulher, pelo contrário, me sinto muito útil à sociedade”, afirma. Logo que tomou posse, em 2014, como única delegada mulher no estado de Rondônia, enfrentou um pouco de resistência em relação a alguns colegas, principalmente, os mais antigos e experientes. No entanto, conta, essa resistência foi quebrada em curto prazo. “Trato todo e qualquer servidor com educação e respeito, e me disponho a participar de todas as atividades, até mesmo em situações que consideravam ‘não ser para mulheres’”, explica.
A delegada conta que, nos primeiros meses após a posse, foi designada chefe de uma equipe que realizaria busca e apreensão na residência de um policial. A equipe foi recebida pelo alvo armado. Foi preciso subir no forro da casa, que era escuro, quente e cheio de bichos. Então, ela pegou uma escada e subiu. “Alguns minutos depois voltei com o uniforme completamente molhado de suor, cheio de teias de aranha e me deparei com a cara de espanto dos colegas que não esperavam tal atitude”, recorda.
Para ela, a diferença que existe entre um cargo e outro é apenas a atividade que cada um desempenha, e todos devem trabalhar juntos como uma engrenagem. “Os homens que tratam as mulheres de forma diferente, foram criados em famílias onde a figura da mulher era desvalorizada, é um problema que vem do seio familiar”, analisa.
A discriminação de gênero, avalia a delegada, é criada, na maioria das vezes, pelas próprias mulheres. Para ela, a maioria das que se dizem feministas, na verdade, são mulheres que se subestimam. “Tudo que um homem pode fazer, a mulher também pode. E não precisa ter um tratamento diferenciado para tanto. Se ela quer tratamento igual, tem que encarar as mesmas coisas e ter em mente que isso é possível, sim”, argumenta.
A única distinção que defende para o desempenho de atividades é, nos casos de mulheres, e não apenas delegadas, com filhos pequenos, no caso de algumas viagens a serviço.
Daniela também foi vítima de esgotamento mental e físico, por causa do trabalho, dada a sobrecarga de demandas. A chegada de novos colegas, em dezembro de 2019, quase dobrando o número de policiais, em Rondônia, amenizou essa situação.
“A minha reação quando soube que viriam cinco delegadas para a Superintendência em Porto Velho foi de espanto, porque eu era a única mulher até então. Ter outras mulheres como colegas de profissão é incrível, até mesmo para mostrar nossa força e capacidade”, comemora.
Sobre violência doméstica, Daniela defende que a mulher precisa se conscientizar que ela não é inferior e que o homem não tem o direito de agredir sua companheira, seja física ou psicologicamente. E que isso passa pelos valores familiares. “As mães precisam criar as filhas para serem independentes, é necessário que a forma de educar seja revista”, afirma. Segundo ela, a maioria das mulheres acaba aceitando viver em relações abusivas por depender financeiramente de seus companheiros. “Isso é inaceitável”.
“Direitos iguais entre gêneros é uma necessidade básica. Nós, mulheres, somos constantemente testadas para provar que também somos capazes”.
Janine Bastos – delegada de Polícia Federal/AP
Janine Henrique Bastos
Natural da Lapa (PR), Janine é solteira, tem 28 anos, e é da última turma do concurso de delegados da PF, sendo a única delegada mulher lotada na Superintendência Regional da PF, em Macapá (AP), há quatro meses. Tenta matar a saudade de casa por meio de ligações, chamadas de vídeo e visitas nos feriados, quando o trabalho permite. Antes de ser delegada, atuava como conciliadora criminal e advogada. Gosta de ir ao cinema e se confraternizar com amigos quando está de folga, além de praticar atividades físicas sempre que pode, para manter o equilíbrio mental e emocional.
Utiliza as memórias, ainda bem frescas, das muitas horas de estudo, a formação na Academia Nacional de Polícia e tudo o que passou para ocupar o espaço onde está e desempenhar as tarefas para, segundo ela, ter a certeza de que está no lugar certo. “Outra coisa que ajuda muito é estar rodeada de uma ótima equipe, inclusive composta por mais uma mulher, escrivã, que me apoia constantemente e me lembra que sou tão capaz quanto qualquer outro delegado”, afirma.
Janine considera que o principal desafio enfrentado por uma mulher delegada federal é conquistar a confiança dos outros, tanto de terceiros quanto dos próprios colegas. “Sempre temos que demonstrar nossa capacidade, como se já não fosse inerente ao importante cargo que ocupamos”, observa.
Nesse pouco tempo, já percebeu que não é uma profissão fácil e que o cargo de delegado federal ainda é dominado por homens, o que faz com que as mulheres sejam constantemente colocadas à prova. “Muitas vezes, a sensação é de que temos que ser, no mínimo, três vezes mais eficientes que os homens para nos aceitarem como no mesmo nível”, afirma.
Para a delegada federal, apesar das constantes evoluções, a sociedade ainda está longe de ser igual. Ela mesma se sentiu discriminada por ser mulher, diversas vezes. “Em pleno 2020, é inaceitável que ainda tenhamos que sofrer qualquer tipo de preterição com base no gênero”, diz.
Segundo ela, direitos iguais entre gêneros é uma necessidade básica. Ninguém está pedindo qualquer tipo de preferência, apenas que ambos os sexos tenham acesso aos mesmos direitos, garantias e possibilidades. “Em síntese, o que é previsto constitucionalmente, há mais de trinta anos”, diz.
Para Janine, a principal medida para conter a violência contra a mulher é tratar o problema como uma epidemia, especialmente entendendo que machismo mata. Segundo ela, se faz necessária uma nova postura, em especial pelos governantes, mas também da população, em geral. “Essa não é uma questão de saúde mental e, sim, cultural, onde ainda há o pensamento de pertencimento da mulher ao homem”, analisa.
Ela não acha que a mulher esteja protegida apenas pelo fato de atuar na segurança pública. “Com certeza estamos em uma situação de menos vulnerabilidade, mas, infelizmente, nenhuma de nós está livre de sofrer violência em razão do gênero”, diz.