Delegado avalia discussões sobre estado democrático
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O dilema entre estado democrático e policial
Felipe Quintino
fquintino@redegazeta.com.br
A Constituição está no meio de um fogo cruzado. Em duas décadas da lei maior, uma discussão ganhou força: os limites entre a atuação das polícias e o respeito às garantias individuais.
Se por um lado partem críticas em relação ao excesso das escutas telefônicas e à banalização do uso de algemas, por outro, está em jogo as artimanhas para escapar das punições, com o aumento da sensação de impunidade. Esse dilema do Estado policial versus o Estado democrático de Direito é o tema do último dia da série de reportagens de A GAZETA sobre os 20 anos da Constituição Federal.
O debate ampliou, principalmente, com o curso da Operação denominada Satiagraha, que prendeu o dono do Grupo Opportunity, Daniel Dantas. Assim que a Polícia Federal deflagrou a operação, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro, Gilmar Mendes, acusou os policiais envolvidos na investigação de promover um espetáculo e criticou o uso de algemas. Já Tarso Genro, ministro da Justiça, saiu em defesa da polícia, embora tenha admitido que foram cometidos excessos, como a exposição dos presos algemados.
Nas operações, as interceptações telefônicas se tornaram um método de investigação freqüente. O método está no foco do debate entre os especialistas, já que, segundo dados da Comissão Parlamentar de Inquérito das Escutas Telefônicas, só ano passado, foram mais de 400 mil escutas em linhas fixas e celulares com autorização judicial.
“Com a desculpa de reprimir a violência, as escutas estão sendo usadas de maneira desenfreada. Essa questão assumiu proporções graves e atenta contra os direitos fundamentais da pessoa humana. Os fins não podem justificar os meios”, afirmou o conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Agesandro da Costa Pereira.
Para o historiador e integrante da ONG Transparência Capixaba Rafael Simões, embora o foco das operações seja o combate ao crime, todos os limites legais devem ser respeitados. “Não é possível tolerar, mesmo que por motivos supostamente nobres, a quebra da legalidade. A transformação da sociedade pela via democrática, com toda certeza, dá mais trabalho, exige mais esforço de explicação, mobilização e convencimento, mas apresenta resultados efetivos e duradouros”, disse.
Sobre a discussão do Estado policial, o delegado da Polícia Federal e integrante da Diretoria de Combate ao Crime Organizado Rodrigo Carneiro Gomes avalia que esse debate intenso traz a oportunidade de rever e aprimorar os métodos. “Difícil acreditar que a Polícia aja de forma isolada e contrária às instituições democráticas se todos seus atos são submetidos à supervisão e controle externo. Se a polícia erra, é porque faz parte um sistema de Justiça”, afirmou.
Ministério Público ganha força com a Constituição
Com a Constituição de 88, o Ministério Público ganhou grande relevo. Além de autor das ações, a instituição sacramenta a função de defender os interesses sociais e individuais indisponíveis. Mas como está o desempenho das suas obrigações constitucionais?
“Nesses vinte anos de nova ordem constitucional, muito embora o aprimoramento deva ser uma constante, e as críticas, uma caminho para a reflexão, é inegável que o Ministério Público surge no cenário nacional como um dos atores mais representativos na defesa dos direitos e interesses coletivos e difusos da sociedade”, avaliou a procuradora-chefe do Ministério Público Federal (MPF) no Espírito Santo, Elisandra Olímpio.
Ela complementa ainda que o desenvolvimento da instituição é solidificado pelo ambiente democrático. “Tal desenvolvimento institucional, é preciso relembrar sempre, é fruto, em primeiro lugar, do desenvolvimento e da solidificação da democracia em nosso país, que passa a contar em sua ordem constitucional não com a velha instituição acusadora, formalista e conservadora de outrora, mas com um novo Ministério Público, totalmente redesenhado para seu novo papel neste novo milênio: o de advogado do povo”, disse a procuradora.
A Constituição de 88 reservou um capítulo próprio ao Ministério Público. Por meio da emenda 45, foi instituído o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), com atribuição de controle da atuação administrativa e financeira do órgão.
Juiz capixaba testou eficácia da Carta Magna
O juiz aposentado e professor capixaba João Batista Herkenhoff foi um dos primeiros no país a testar os instrumentos da Constituição Federal. No dia da promulgação, 5 de outubro, ele encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) um habeas-data, recurso que teve origem na Constituição de 88. Segundo informações do Supremo, ele foi o quarto do país a apresentar o recurso.
Rede Gazeta realiza seminário
Para marcar as duas décadas da Carta Magna, a Rede Gazeta realiza a partir de amanhã, em parceria com a Faculdade de Direito de Vitória (FDV), o “Seminário 20 anos de Constituição: um marco na redemocratização do país”.
O evento, que acontece no auditório da Rede Gazeta e se estende até sexta-feira, contará também com palestras, apresentação de filmes e de trabalhos científicos. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas pelo site www.fdv.br.
Quem vai abrir a programação, às 9 horas, será a professora da FDV e doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Enéa de Stutz e Almeida, com a palestra “A história do Brasil a partir de nossas Constituições”.
Durante o evento, a FDV realiza o VII Seminário de Pesquisa. O objetivo é dar espaço para os pesquisadores da faculdade e das demais instituições de ensino, para apresentar seus trabalhos científicos ao público. Os três dias do seminário da Constituição Federal serão encerrados com o projeto Filme em Debate, com temáticas relacionadas à época da ditadura militar.
Entre os filmes estão “Zuzu Angel” e “Vai passar”. O evento pretende apresentar aos jovens, sob uma perspectiva da história, do direito, da ciência política e da sociologia, um panorama sobre o estado democrático de direito, estabelecendo comparações com o período ditatorial. Em 1986, a Rede Gazeta esteve à frente do projeto “Espírito Santo na Constituinte”, com a discussão de questões da nova Constituição que seria preparada.
Aniversário da Carta é tema de eventos no país
Vários eventos estão programados no país para discutir os 20 anos da Constituição. Em setembro, de 9 a 11, um seminário será realizado no auditório da Universidade de Brasília. A Câmara dos Deputados já começou uma programação extensa. O mercado editorial também se movimentou. A Editora Paulus lançou livro sobre o assunto, dos autores Sérgio Praça e Simone Diniz.
Análise
Rodrigo Francisco de Paula , professor do curso de Direito do Centro Universitário Vila Velha (UVV)
Assiste-se hoje no Brasil um debate sobre o uso e o abuso das escutas telefônicas nas investigações policiais. A Constituição é clara ao assegurar, como garantia fundamental da privacidade, o sigilo das comunicações telefônicas, exigindo, sempre, que a quebra do sigilo só seja feita em último caso, com autorização judicial, na forma da lei e para fins de investigação criminal ou instrução processual penal (art. 5º, XII, da Constituição).
Deve, por isso, ser repudiado o argumento de que somente é possível haver eficácia nas investigações policiais se houver o uso das escutas telefônicas, sob a falácia de que “quem não deve não teme”, acompanhada da percepção enviesada de que os direitos e garantias fundamentais não podem servir de escudo de proteção para a prática criminosa.
A diversidade de posições, na interpretação da Constituição, é bastante comum em regimes democráticos, sendo salutar a sua existência, até para propiciar uma constante renovação de sentido do texto constitucional. Mas, num país com pouca tradição democrática como o Brasil, deve-se ter cuidado com interpretações possíveis da Constituição que possam reduzir, ou até mesmo anular, o sistema de proteção dos direitos humanos, estabelecido pelo reconhecimento de direitos e garantias fundamentais.
Daí porque devem ser evitadas interpretações do texto constitucional baseadas numa retórica que procura convencer que os direitos humanos são os “direitos dos bandidos”, que deveriam ceder diante de um interesse maior ? que seria o interesse público ? de se punir a prática criminosa. Ora, a garantia do sigilo das comunicações telefônicas é essencial ao bom funcionamento do regime democrático, porque decorre da própria proteção da privacidade.
Os regimes políticos que permitem ao Estado bisbilhotar indiscriminadamente a vida privada das pessoas são marcados pela ubiqüidade do medo. É por isso que a quebra de sigilo das comunicações telefônicas tem de ser realizada com as cautelas previstas na própria Constituição, devendo ser combatidas, a todo custo, todas as tentativas de se transformar o Estado Brasileiro num Estado de inspiração policialesca ou totalitária.