Delegado em BMW de traficante

17 de dezembro de 2007 10:54

O limite entre o público e o privado foi colocado à prova por um homem da lei. A Polícia Federal recebeu da Justiça Federal no Paraná autorização para utilizar um potente BMW X5 no combate ao tráfico de drogas. Apreendido em São Paulo em poder de um dos maiores traficantes do país, e avaliado em R$ 296,5 mil, o carro importado foi colocado à disposição da Diretoria de Inteligência (DIP) da corporação em Brasília. E se transformou em meio de transporte do delegado Renato Porciúncula, então diretor da área, que chegou a ser cotado para assumir a direção-geral da PF. Transferido para a Agência Brasileira de Inteligência (Abin) em outubro passado, Porciúncula não devolveu o veículo.

Hoje, ele guarda o luxuoso automóvel na garagem de casa, no Lago Norte, e o usa para se deslocar até o trabalho, no Setor Policial Sul. A reportagem do Correio flagrou Porciúncula a bordo do BMW, na quinta-feira 6 de dezembro, a caminho da Abin. Por volta das 8h40, o delegado tirou o carro da garagem, pegou o Eixão e seguiu para a agência, onde desempenha a função de assessor especial do diretor-geral e também delegado da PF, Paulo Lacerda. Fabricado na Alemanha em 2005, o veículo modelo 2006, cor preta, movido a gasolina e com 360 cavalos de potência, acumula R$ 16,3 mil em débitos. O valor se refere ao IPVA não pago.

O BMW estava em nome de Luiz Carlos Marques, identidade falsa do traficante Luciano Geraldo Daniel. Ele foi preso durante a Operação Ícaro, desencadeada pela PF em três estados  São Paulo, Paraná e Santa Catarina. A Justiça confiscou em poder da quadrilha comandada pelo traficante R$ 15 milhões em bens, incluindo o BMW e uma frota de 13 carros de luxo.

A pedido da Superintendência da PF no Paraná, o juiz federal Sérgio Moro, da 2ª Vara Criminal de Curitiba, assegurou o direito a uso desses veículos, à exceção de um GM/Corvette que foi leiloado. No despacho, de dezembro de 2006, o magistrado definiu que os automóveis deveriam ser usados para deslocamento dos policiais que atuam diretamente na repressão ao tráfico de entorpecentes, armas e outros ilícitos de atribuição desse departamento. No caso do BMW, Sérgio Moro permitiu funções adicionais: veículo de representação (destinado para transporte de autoridades a solenidades, congressos e recepções oficiais) e proteção a testemunhas e autoridades. Ao saber da denúncia, o juiz federal se surpreendeu e informou que pretende pedir esclarecimentos ainda esta semana à Abin e ao delegado. O que importa é que o bem fique disponível ao serviço público, cabendo aos órgãos de controle interno e externo da Administração Pública cuidar da fiscalização. Certamente, a Justiça Federal tomará providências.

Uso exclusivo
Procurado pela reportagem na sexta-feira, o juiz reforçou o teor da sentença: A previsão legal é para uso do serviço público. O bem foi cedido para o combate ao crime. À época da decisão, a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), ligada ao Ministério da Justiça, e o Ministério Público Federal foram consultados e concordaram com ela. A Lei nº 11.343/06 prevê que os bens apreendidos pelas autoridades policiais em ações de repressão ao tráfico podem ficar sob a custódia provisória da polícia, de órgão de inteligência ou militares para não se deteriorarem enquanto aguardam trâmite dos processos na Justiça. Precisam, contudo, serem usados exclusivamente no combate ao crime, e não para uso doméstico, como descolamentos da casa do policial para o trabalho.

Porciúncula chefiava a DIP quando o carro foi apreendido. Apesar de Brasília não ter sido alvo da Operação Ícaro, o BMW foi trazido à capital do país para ajudar os federais na guerra contra o tráfico de drogas e de armas. O delegado afastou-se do cargo da PF em outubro, quando o então diretor-geral da instituição, Paulo Lacerda, assumiu a direção da Abin e levou para a agência parte da equipe com quem trabalhou, entre eles Porciúncula. Com o ex-chefe da DIP, o BMW também foi para a Abin.

Depois que Porciúncula assumiu a nova função, foi oficializado um pedido à Justiça Federal para que veículo fosse transferido à agência. Em novembro, o juiz Sérgio Moro decidiu autorizar, provisoriamente, o uso do carro por funcionários da Abin para desempenharem funções exclusivas do serviço público. A decisão foi provisória, porque depende do consentimento da Senad, que ainda se manifestará a respeito.

O Correio tentou localizar o delegado na manhã da última sexta-feira, mas a informação na Abin era a de que ele havia viajado para São Paulo em missão oficial, onde participaria de uma série de reuniões. Por meio da assessoria de imprensa, Porciúncula se limitou a dizer que o BMW é usado no interesse do serviço público em respeito à autorização concedida pela Justiça Federal em Curitiba.

O que diz a legislação
De acordo com a Lei nº 11.343/06, os bens apreendidos pelas autoridades policiais em ações de prevenção ao uso indevido de drogas e repressão ao tráfico podem ter três fins:

Custódia  Bens apreendidos ficam sob uso e custódia provisória da polícia, de órgão de inteligência ou militares envolvidos em ações contra o tráfico. Estes bens sob custódia devem ser utilizados exclusivamente nessas atividades;

Leilão  Os bens apreendidos, que não forem indicados para custódia, serão alienados e depois leiloados. Os valores apurados serão transferidos ao Fundo Nacional Antidrogas (Funad), responsável por promover a venda de bens e/ou a apropriação de valores apreendidos em decorrência do tráfico de drogas;

Doação  Após o trânsito em julgado da sentença, os bens apreendidos e não leiloados serão alienados pela Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) e doados a órgãos públicos federais, estaduais ou municipais ou a instituições filantrópicas cadastradas na Senad.