“Delegado não pode ser alijado da colaboração premiada”, diz jurista

16 de maio de 2016 18:40

Pela Constituição Federal, o órgão que possui legitimidade para apurar infrações criminais é a polícia. Sob essa perspectiva, o delegado de Polícia Federal (PF) não pode ficar alijado de participar de um dos principais meios de obtenção de prova do processo penal, que é a colaboração premiada. A opinião é do jurista Luís Henrique Machado, especialista em crimes financeiros e de lavagem de dinheiro.

 

O advogado, que é mestre e doutorando na universidade de Humboldt, na Alemanha, criticou a proposta da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.508/2016 pelo procurador-geral da República, Rodrigo Janot, junto ao Supremo Tribunal Federal (STF). A ação visa proibir a Polícia Federal de pactuar acordos de delação premiada, de modo que as negociações ficariam a cargo apenas do Ministério Público (MP).

 

“A Constituição não deu ao MP o papel de protagonista na investigação criminal”, afirma Machado. Ele explica que o artigo 129, inciso VIII, da Constituição Federal delimita “a atuação do MP à requisição de instauração do próprio inquérito e de diligências investigatórias”. “A Constituição delega ao parquet a função de exercer o controle externo da atividade policial, e não a de substituí-la”.

 

Machado assinala ainda que, caso a ADI prospere, haverá dificuldade para a celebração de futuros acordos de colaboração premiada. O motivo é que muitos acusados evitam a sondagem de acordo com o MP, uma vez que ela pode prejudicar a estratégia de defesa no caso de as negociações fracassarem.

 

“O delegado de polícia, por não ser ator da relação processual, representa para o acusado uma garantia durante as tratativas, pois este não antecipa a ocorrência dos fatos para o MP, eventual adversário no processo após o recebimento da denúncia”, pontua o advogado Luís Henrique Machado.

 

 Qual a principal contribuição trazida pela colaboração premiada para a ordem jurídica brasileira?

 

De antemão, importante esclarecer que o instituto da delação é um instrumento de dupla-face. Primeiro, demonstra-se como um forte meio de obtenção de prova no combate contra o crime organizado. Segundo, a colaboração premiada robustece sobremaneira o direito à ampla-defesa do acusado. Pelas suas próprias características, o instituto já apresenta as vantagens de sua aplicação, o que vem sendo demonstrado com clareza nesses mais de dois anos da Operação Lava Jato. Por um lado, criminosos confessos ampliaram o objeto da investigação, alcançando os chamados “peixes-grandes” do esquema de corrupção, havendo mais de 140 pessoas denunciadas, mais de 30 condenadas. Estima-se que, por meio dos acordos entabulados, mais de R$ 500 milhões foram recuperados aos cofres públicos. É inegável a contribuição do instituto. Por outro, permitiu que réus praticamente sem chance de sucesso em suas defesas no processo, pois as provas que recaíam eram evidentes, pudessem obter penas mais brandas em troca de informações que auxiliassem efetivamente a investigação. Ressalte-se que, mesmo por razões de política criminal, é importante entender que, nesse ponto, o instituto revela uma faceta proativa da ampla-defesa, pois o réu, ciente da real possibilidade de uma condenação certa, pode contar com um instituto que assegura a redução ou até mesmo extinção de sua pena.

 

A Lei 12.850/13 legitimou a participação de delegados na Polícia Federal em relação à colaboração premiada. Ela deveria ser um instrumento exclusivo do Ministério Público, conforme pretende o procurador-geral por meio da ADI 5.508/16?

 

Em hipótese nenhuma. Como bem pontuou o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso: “a Constituição não deu ao Ministério Público o papel de protagonista da investigação criminal”.  Na verdade, o único órgão que possui legitimidade constitucional expressa para apurar infrações criminais é a polícia. Para fins de inquérito criminal, o artigo 129, inciso VIII, da CF/88 reduz a atuação do Ministério Público à requisição de instauração do próprio inquérito e de diligências investigatórias. Ademais, a Constituição delega ao Parquet a função de exercer o controle externo da atividade policial e não a de substituí-la. Nessa perspectiva, não poderiam os órgãos de polícia ficar alijados da participação de um dos principais meios de obtenção de prova do processo penal, que é a colaboração premiada, sob a pena de solapar por completo as atribuições delegadas à polícia pelo poder constituinte originário. A rigor, a pergunta deveria ser inversa: poderia o Ministério Público celebrar acordos de delação premiada? A meu sentir, atribuir o monopólio do instituto da colaboração premiada ao Ministério Público configuraria patente “pedalada hermenêutica”, violando frontalmente as disposições do texto constitucional.

 

Na percepção penal, a colaboração premiada é um procedimento que pode aproveitar apenas a acusação?

 

Não. A própria legislação prevê a redução de pena ou até mesmo a extinção da punibilidade via perdão judicial, o que, a priori, não interessa à acusação. Pode ocorrer também, em razão das colaborações acordadas, que determinada pessoa alvo inicial da investigação, seja considerada posteriormente inocente, porque os delatores não imputaram àquela pessoa a participação na execução do delito. Veja que os termos declarados podem, sim, ser aproveitados em benefício da defesa de um determinado acusado, nada impede isso.    

 

Quais os riscos de se limitar a atuação da Polícia Federal e aumentar o poder e o controle do Ministério Público sobre investigações criminais?

 

As consequências são prejudiciais para o próprio processo democrático, pois esvazia-se a confiança mútua que deveria prevalecer entre as instituições e fragiliza o acusado, colocando em xeque a isenção do promotor de Justiça na fase pré-processual. Nessa etapa, quando conduzida exclusivamente pelo delegado de polícia, preserva-se a imparcialidade do promotor, para o qual, em momento posterior, é reservada a distinta prerrogativa de decidir sobre o arquivamento, o oferecimento da denúncia ou a requisição de diligências complementares. Assim, salutar seria o Ministério Público, pelo menos nessa fase, manter certa distância, sem interferência direta no processo investigativo, atuando na qualidade de coordenador e revisor da produção probatória para formar com isenção a opinio delicti e não como executor, caso em que inarredavelmente termina se contaminando com a consecução dos trabalhos.  

 

O que acha que motivou a ação por parte da PGR?

 

Difícil avaliar, mas deixa transparecer uma questão de ego(ísmo) corporativo. O mero argumento de que haveria usurpação da titularidade da ação penal pública, porque compete ao Ministério Público dirigir a investigação criminal, no sentido de definir quais provas considera relevantes para promover a ação penal, com oferecimento de denúncia ou arquivamento me parece inconsistente. Como bem apontaram Francisco Sannini Neto e Henrique Hoffmann Monteiro de Castro em brilhante artigo, se nenhuma providência probatória pudesse ser tomada sem a consulta do titular da ação penal, então nem o inquérito policial poderia ser instaurado pelo delegado de polícia, que também não poderia requisitar perícia, ouvir testemunhas, apreender objetos etc. Caso se dê azo a essa interpretação, a própria existência do inquérito policial perderia todo o sentido.

 

A colaboração premiada celebrada pela Polícia Federal foi usada em investigações importantes de combate ao crime e à corrupção, como nas operações Lava Jato e Acrônimo. Há possibilidade de anulação dessas investigações caso a ADI avance no Supremo? Por quê?

 

Se a ADI for julgada procedente, algo que particularmente não acredito, dependerá se o tribunal concederá ou não efeitos modulativos. Se o entendimento for pela procedência, pode ser que o tribunal decida que ela só tenha eficácia a partir daquele momento em diante. Aliás, existe pedido expresso na ADI nesse sentido, preservando os acordos até então entabulados pelos delegados de polícia.

 

Que outras consequências teriam caso uma medida como essa prospere?

 

Por razões variadas, existem acusados que não querem o menor contato com o Ministério Público. O que muitos advogados receiam é que, às vezes, ao se fazer a sondagem do acordo, questões relativas à estratégia da defesa são inevitavelmente ventiladas e terminam por prejudicar sensivelmente o direito de defesa em caso de fracasso das negociações. Malogrado o acordo, o Ministério Público adquirirá inside informations, as quais poderão acarretar em prejuízo do réu no deslinde da fase processual. Na prática, o delegado de polícia, por não ser ator da relação processual, termina representando para o acusado uma verdadeira garantia durante as tratativas, preservando o direito de defesa, pois o acusado não antecipa a ocorrência dos fatos para o Ministério Público, eventual adversário no processo em caso de recebimento da denúncia. Entendendo o delegado, de pronto, até mesmo em oitiva informal, o que ocorre com frequência, que as informações prestadas não poderão ser objeto de acordo por já terem sido reveladas por outros corréus, resta incólume a estratégia defensiva, não acarretando adiantamento de informações vitais à defesa. Assim, acredito que, como consequência, haverá uma dificuldade maior para a celebração de acordo, principalmente na hipótese em que o acusado estiver em dúvida se deve celebrá-lo ou não.