Diretor da ADPF fala sobre investigação do Ministério Público

5 de fevereiro de 2014 12:02

A polícia tem independência suficiente para investigar, por ser vinculada ao Poder Executivo, como teria o MP, órgão autônomo?

Apesar de a Polícia estar vinculada ao Poder Executivo, tal como o Ministério Público, ela tem sim autonomia para investigar crimes graves que atingem a alta cúpula do governo. Exemplo disso são as operações que a Polícia Federal já realizou, muitas das quais investigando políticas e funcionários públicos de alto escalão, como o Mensalão do PT, o Mensalão do PSDB e a Operação Caixa de Pandora. O fato de termos uma hierarquia interna não tolhe a independência dos Delegados na condução das suas investigações e agrega mais controle a essa atividade. Além disso, a Polícia Judiciária está buscando mecanismos para robustecer essa independência no curso das investigação, como as leis 12.830 e 12.850/2013, que deram algumas garantias a mais para os delegados investigarem os crimes de maior vulto, como os crimes de corrupção, do colarinho branco e os cometidos por organizações criminosas.

Há de ser aplicada a questão o princípio dos poderes implícitos, de modo que se a Constituição assegura ao MP competência privativa para promover a ação penal pública, deve ter-lhe também assegurado os meios para alcançar esse fim?

Há um interessante parecer que o constitucionalista José Afonso da Silva escreveu sobre o poder investigatório do Ministério Público para o IBCCrim, em que ele contesta a aplicação dos poderes implícitos e a máxima “quem pode o mais, pode o menos” para justificar a existênncia de tal poder. Ele diz que “Se esse prolóquio tem algum valor no campo de direito privado, não sei, mas no campo do direito público, especialmente no direito constitucional, não tem nenhum valor.” Além disso, expõe que essa teoria só seria aplicável se a Constituição tivesse sido omissa sobre esse ponto, o que não é o caso, pois há a previsão expressa de que as Policias Civis e a Federal deverão investigar os delitos. A Constituição Federal utiliza a tripartição de poderes e o sistema de freios e contrapesos justamente para evitar que os órgãos venham a abusar do poder. Por isso, a Polícia é quem investiga, o MP acusa e o Judiciário julga. Se o MP começar a investigar e acusar, quem irá fiscalizar os abusos que ele cometer durante a investigação? Só falta ele julgar, para alcançarmos um sistema totalmente arbitrário. Se a proposta de Plea Bargain que o MP fez na proposta de Código Penal do senador Pedro Taques prosperar, teremos justamente isso.

Se tivesse sido aprovada, a PEC 37 impediria que outras instituições, como Receita Federal, Banco Central, Tribunais de Contas e Controladoria-Geral da União, fizessem investigações? Em que medida isso é benéfico ao sistema judicial?

Claro que não. É um total engano dizer que tais órgãos realizam investigações criminais. O que acontece é que esses órgãos, ao realizar os procedimentos administrativos de sua atribuição, podem se deparar com crimes, os quais são notificados à Polícia Judiciária. A Receita Federal, por exemplo, ao realizar a fiscalização, ela está procurando saber se o contribuinte pagou corretamente os tributos, e não se o contribuinte cometeu ou não crimes. Isso pode acontecer, mas de forma incidental. É como um sujeito que está andando pela rua e se depara com um cadáver estendido no chão. Apesar de essa pessoa ter sido a primeira a ter notícia do possível homicídio, não será ela que realizará a investigação. Por isso, o dever de tais órgãos é comunicar a Polícia para que ela possa realizar as diligências de investigação criminal, que não se confundem com procedimento administrativo de atribuição das outras instituições. Pelo contrário, a Polícia necessita que tais órgãos trabalhem, realizem as investigações de sua atribuição, justamente para que ela possa investigar a parte criminal. E a Polícia Federal sempre tem trabalhado em conjunto com outros órgãos, como INSS, Receita Federal, Banco Central, Ministério do Trabalho e Emprego, Caixa Econômica Federal, Ibama, dentre outros. E a grande maioria das operações policiais da PF só foram feitas em decorrência dessa intensa colaboração com os outros órgãos. Por isso, a PEC 37 não alteraria o que esses órgãos já fazem hoje.

Em que medida a discussão da PEC 37 é motivada por interesses corporativistas do MP e da polícia?

Na verdade, esse movimento que o MP fez contra a PEC 37 foi totalmente corporativista. Primeiro, gostaria de dizer que o Ministério Público tem um papel fundamental, crucial na persecução criminal. No Brasil, há inúmeros advogados excelentes e investigados com muito dinheiro. O papel do Ministério Público é de ser o advogado do povo e fazer uma atuação impecável em juízo, justamente para fazer frente justamente a tais advogados e garantir que as provas colhidas durante o inquérito sejam aceitas pela Justiça. Infelizmente, o Ministério Público parece ter se interessado mais em fazer outras coisas do que em realmente o que é de sua atribuição. O MP tem atuado de forma fraca perante os tribunais e acabam perdendo diversas ações criminais. Vejam, por exemplo, quantas operações policias acabaram sendo derrubadas nos tribunais, apesar de possuírem parecer favorável do MP na primeira instância. Isso mostra que o MP não tem atuado com rigor nessa área, que é a atribuição que a Constituição lhe conferiu. A maior causa da impunidade no país é justamente a fraca atuação do MP como acusador na fase judicial. Por isso, vários processos penais acabam prescrevendo, sendo anulados ou absolvendo o réu, ainda que haja elementos de prova no inquérito. Um exemplo disso foi o caso do Banestado, que prescreveu nesse ano, após ficar parado um ano e três meses na PGR. Outro exemplo é a grande quantidade de teses de defesa que prosperam nos nossos tribunais superiores, o que revela que a defesa tem tido uma atuação muito mais forte do que a acusação. Por isso, o cerne da impunidade se encontra na fase judicial, e não na investigação.

A segunda questão é que me parece que MP não tem se contentado com esse papel, que friso ser fundamental para o combate a impunidade, e quer agora ser polícia também. Como a atuação judicial não dá mídia, parece que o Ministério Público prefere deixar de lado suas atribuições constitucionais para tentar abraçar outras atividades. Se a atuação judicial do MP fosse impecável, poderíamos até pensar nisso. Porém, considerando a baixa taxa de sucesso que o MP tem nas ações penais, creio ser temerário essa expansão. Os órgãos públicos não podem ser guiados pelo que dá mais visibilidade, e sim pelo papel que a Constituição lhe deu. Um órgão não pode ser medido pela quantidade de deputados ou senadores que vieram de suas fileiras. Pelo contrário, isso pode ser um indício de que o órgão está sendo usado como trampolim para que alguns entrem na arena política.

Por fim, gostaria de pontuar que, curiosamente, o MPF entrou com uma ADIn contra a lei 12.830/2013, que dá algumas prerrogativas aos Delegados. Ao mesmo tempo em que alega que os Delegados não têm autonomia para realizar investigações, o MP toma medidas contra a necessária independência da Polícia na apuração de delitos. Isso mostra que o parquet está mais interessado em defender seus pleitos classistas do que uma investigação efetiva.

O arquivamento da PEC 37 ter sido motivado, em grande parte, pelo clamor público das manifestações de junho/julho é benéfico para a sociedade?

Creio que os movimentos de reivindicação que ocorreram no meio desse ano foram um sinal de que há necessidade de maior participação da sociedade na política. No entanto, a discussão foi muito rasa e o próprio movimento contra a PEC 37 demonstra isso. O questionamento do modelo de investigação criminal é válido e creio que os brasileiros devem questionar vários aspectos do governo, como a política fiscal e a política de transportes, etc. No entanto, essa é uma discussão profunda, em que estão envolvidos diversos órgãos e atores, além da conjugação princípios muito caros à uma democracia jovem e saída a pouco tempo de uma ditadura – como direitos fundamentais do cidadão e a necessidade de uma persecução criminal efetiva. Não é possível em uma tarde resolver todos os problemas do sistema penal do Brasil.

Além disso, os defensores da PEC 37 não foram bons marqueteiros. O MP utilizou a própria máquina da instituição para promover a campanha contra a PEC 37. Não vou utilizar o exemplo das passagens aéreas dos membros do MP a Brasília que a mídia noticiou, e sim o fato de até hoje as páginas oficiais dos Ministérios Públicos terem material contra a PEC 37, com a utilização de recurso público para criação e manutenção de tais conteúdos.

As Polícias Civis e a Federal, as quais preferiram ser mais cautelosas e não utilizaram a própria máquina para fazer campanha a favor da PEC 37, não fizeram uma campanha a altura e acabaram perdendo a discussão para um público que só sabia dizer que a PEC 37 era a PEC da Impunidade. O MP conseguiu capturar o movimento e dirigi-lo a seus fins corporativos.

Os contrários à PEC 37 a intitularam de "PEC da Impunidade", entendendo que seria uma retaliação ao trabalho do Ministério Público no combate à corrupção. Como tal trabalho é feito atualmente e o que mudaria se a PEC tivesse sido aprovada?

A PEC 37 não mudaria em nada o que é feito hoje. O MP tem um importante papel previsto constitucionalmente de combate a corrupção na parte administrativa e cível, por meio das ações de improbidade, das ações civis públicas e do inquérito civil. Na fase criminal, a investigação é feita pelas Polícias Judiciárias e com o auxílio do MP, que atua nessa fase como fiscal da lei e que pode pedir diligências adicionais ao final da investigação. Quando o Delegado encerra as investigações, o MP recebe o inquérito policial e utiliza as provas contidas nele para oferecer a denúncia e prossegue na fase judicial. Com base nesse modelo foram feitas todas as operações da Polícia Federal, por exemplo. A única coisa que a PEC proibiria seriam as investigações feitas diretamente pelo MP, as quais são muito problemáticas. Hoje, o MP faz investigações sem controle algum por meio de seus PICs.

Isso dá espaço para arbitrariedades, perseguições e outros abusos, a maioria dos quais nunca chegaremos a saber se ocorreu, porque não há mecanismos de controle externo sobre essa investigação, já que só o MP pode investigar os seus membros.

Se é que a PEC 37 só confirmava valores já presentes na Constituição no que diz respeito à competência policial, o que motivou sua propositura em 2011? E quais são as outras soluções para o problema que originou a PEC?

O que motivou a propositura da PEC 37 foi essa atuação do MP sem se submeter a controles de legalidade. O inquérito se submete a sete tipos de controles realizados por diversos atores internos e externos – como o Ministério Público, a Justiça, a Corregedoria da Polícia, a OAB, a sociedade e o próprio investigado – enquanto que as investigações do MP não têm nenhum controle desses. O único controle possível seria o judicial, se essa investigação efetivamente virar uma ação penal. Senão, ninguém fora do MP tomará ciência de tais investigações. Isso é uma fonte gigantesca para desmandos e tergiversações, um verdadeiro risco à sociedade, que pode se ver refém daquele que seria o seu protetor. Por isso, se o constituinte resolvesse atribuir poder de investigação ao MP, ainda que subsidiário, seria necessário que a investigação criminal feita por esse órgão se submetesse a controles semelhantes.

E, por fim, como é a divisão dessas competências em outros países, se é que tem sentido essa comparação?

Em todos os países, a investigação criminal é dirigida por um jurista, alguém que conheça e saiba aplicar as leis. Há três modelos básicos: o Juizado de Instrução, o Ministério Público investigador e a investigação policial. No Juizado de Instrução, modelo adotado pela Espanha e Argentina, por exemplo, o juiz é quem realiza todos os atos de investigação. Em outros países, como Portugal, Itália e Perú, há o modelo do Ministério Público Investigador. Ou seja, o próprio membro do Ministério Público formaliza todos os procedimentos investigativos, realiza a prisão em flagrante, decide como as investigações serão feitas, etc. O nosso modelo é o de Investigação Policial, importado da Inglaterra no fim do século XIX, juntamente com o inquérito policial. É um modelo mais recente do que os outros dois, que vêm da idade média, e põe a própria polícia como a responsável pela investigação. No Brasil, foi adotada a figura do Delegado de Polícia, que sempre foi um bacharel em Direito, para realizar esses atos de investigação, como a presidência dos inquéritos, lavratura de flagrante e representação pode medidas preventivas, que em outros países são exercidos pelo juiz ou pelo membro do Ministério Público. É um modelo considerado mais garantista, pois o investigador é imparcial, e adotado nos países de origem anglo-saxã, como Inglaterra, Noruega e Nova Zelândia. O Brasil cogitou adotar o modelo de Juizado de Instrução no Código de Processo Penal, mas resolveu continuar o modelo de inquérito policial, e rejeitou o modelo de Ministério Público investigador durante a assembléia constituinte de 1988. Por outro lado, o modelo de Ministério Público investigador também não é isento de problemas. Portugal adotou esse modelo no fim da década de 1990 e vários problemas surgiram, pois o Ministério Público não consegue, até hoje, acompanhar todas as investigações, que estão sendo feitas por todos os órgãos policiais, inclusive a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana, que são equivalentes a nossa Polícia Militar. Na Itália, o Ministério Público investigador gerou tantas distorções, perseguições, por causa da parcialidade do investigador, que gerou a investigação defensiva. Assim, o modelo que o Ministério Público quer implantar no Brasil também não é isento de problemas.

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