Entrevista com o Jurista Ives Gandra Martins
"Depois da Lava Jato, temos menos tolerância com a corrupção dentro da Administração Pública"
Um dos juristas mais renomados do país, o advogado, professor e escritor Ives Gandra Martins continua em plena atividade, aos 82 anos de idade. Ele não apenas ministra palestras no Brasil e exterior, como sustenta, há décadas, uma rotina diária de militância na advocacia, que acompanha, de perto, a vida política do Brasil.
Em entrevista à Revista Delegados Federais, Ives Gandra afirma que a Polícia Federal – uma das instituições mais respeitadas do Brasil – carece de autonomia para exercer plenamente as funções que lhe foram atribuídas pela Constituição Federal. A entidade é alvo de ofensivas do Ministério Público sobre suas competências e ainda está sujeita a eventuais desmandos do Poder Executivo.
Apesar desse cenário, na avaliação do jurista, a Polícia Federal executa, com eficiência, sua missão primordial de combate a corrupção e o crime organizado. Leia nas próximas páginas!
Dr. Ives Gandra Martins, o sr. é o autor do prefácio do Livro Comemorativo de 40 anos da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal. Qual avaliação o sr. faz da trajetória da entidade?
Em primeiro lugar, a Associação tem uma importância muito grande na preservação das prerrogativas dos Delegados de Polícia Federal. Porém, mais do que isso, fundamentalmente, ela atua na colocação dos princípios que têm regido, não só o que a Lei impõe como a função essencial da Polícia Federal, mas os princípios de preservação dos direitos fundamentais no Brasil. Considero que, hoje, das três grandes instituições respeitadas pelo povo, uma delas, indiscutivelmente, é a Polícia Federal. Se nós considerarmos as instituições públicas mais respeitadas – não coloco a Igreja – temos as Forças Armadas, a magistratura, o Ministério Público, e a outra grande instituição é a Polícia Federal. O status da Polícia Federal ultrapassa, hoje, em muito, a nivelação que havia anteriormente com as polícias estaduais, embora também entendo que houve melhoria em relação aos padrões éticos de exercício profissional nas polícias estaduais. A Polícia Federal, indiscutivelmente, alcançou hoje um status superior em termos de estabilidade da instituição no que diz respeito a não permitir desvirtuamento. Foi assim com a Operação Lava Jato e outras operações, iniciadas com respeito à lei pela Polícia Federal. Estou convencido de que a PF é, hoje, uma das instituições mais respeitadas. Eu poria no tripé: de um lado, magistratura, advocacia e Ministério Público; de outro, as Forças Armadas; e, na terceira ponta, a Polícia Federal, que reúne pessoas dedicadas à preservação da ética, dos bons costumes e do Direito Pùblico bem exercido no país.
O Brasil tem vivido, nos últimos anos, um período de grande enfrentamento à corrupção, com prisões de políticos, empresários e agentes públicos envolvidos em desvios. Como o senhor analisa nossa atual quadra histórica?
Eu vejo um movimento indiscutivelmente importante. Embora tenha feito algumas críticas à Lava Jato, considero o juiz Sérgio Moro um divisor de águas no Brasil – ele vai passar para a história como o homem que fez com que a nação tivesse consciência de que a corrupção não pode existir no Poder Público. Nós tínhamos antes uma leniência, uma tolerância com a corrupção dentro da Administração Pública. Depois da Lava Jato, o povo deixou de ter. O povo se revoltou com aqueles que, no Poder, deviam representar o povo, mas deixaram de representar e se aproveitaram para enriquecer às custas do Poder Público e do dinheiro que o povo contribui. Então, o juiz Sérgio Moro e a Lava Jato foram um divisor de águas, apesar de eu ter duas críticas de natureza legal: em primeiro lugar, em alguns casos, não há corrupção, mas concussão do poder público; em segundo lugar, algumas prisões preventivas foram demasiadamente prolongadas com o intuito de obter a delação premiada.
O senhor tem reais esperanças de um futuro sem corrupção no Brasil?
Estou convencido de que a Operação Lava Jato fez um bem danado para a história do Brasil. Ela veio representar a sensação de que, agora, os costumes políticos vão mudar. Graças à Lava Jato, todo político tem o nível de consciência que, agora, a corrupção pode ser combatida duramente pelos poderes constituídos. Isso fará com que os costumes políticos mudem. Indiscutivelmente, eu tenho a convicção de o juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal e o MP passaram a ter na história do Brasil um lugar já reservado.
Apesar do avanço no combate à corrupção, o senhor tem afirmado, em palestras, que, muitas vezes, o Ministério Público extrapola suas funções.
Há muito tempo que eu venho dizendo isso. Não me parece que o Ministério Público possa exercer suas funções de modo a, muitas vezes, atropelar o Delegado de Polícia. Tenho dito em palestras, conferências, escritos, pareceres, livros, que, conforme o parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição Federal, a atividade de polícia judiciária só pode ser exercida e as investigações só podem ser feitas por Delegados de carreira, e jamais pelo Ministério Público. O Ministério Público é, necessariamente, um acusador. Na dúvida, o Ministério Público tem que acusar. Já o juíz, “in dubio”, decide “pro reu”.
Por isso é tão importante que a investigação seja presidida pelo Delegado?
Vejamos: Qual a função da polícia judiciária? O Judiciário tem um fase vestibular, uma fase preparatória do processo judicial, que deve ser exercida pela polícia, pela polícia judiciária. Por isso que o processo de investigação, que pode resultar em uma denúncia, em um processo penal, é a polícia quem faz. E só ela pode fazer. Só a polícia pode ter a neutralidade para que as duas partes envolvidas permanentemente na investigação – que é a advocacia e o MP – possam exercer suas funções de defesa e de acusação. Agora, como um acusador pode presidir um inquérito que tem que ser imparcial? Como um acusador, que é o MP, pode ser polícia judiciária se o próprio texto constitucional declara que polícia judiciária só pode ser exercida exclusivamente por Delegado de polícia?
Um inquérito comandado pela acusação certamente resultará em um processo injusto.
Esse atropelo, essa entrada do Ministério Público assumindo cargos e funções do Delegado de Polícia gera um desequilíbrio nas investigações, porque o MP passa a exercer uma função que não é sua, prejudicando o direito de defesa, que é sagrado na democracia. A Justiça necessita de uma investigação imparcial e não de uma investigação que, na dúvida, tem que fazer necessariamente a acusação. Me parece que, nesse ponto, o MP não tem razão. Tenho dito, nos mais variados cenários desse país, que essa função é exclusiva do Delegado de Polícia. E tenho levado isso a discussões que se dão com ministros da Suprema Corte, porque, em rigor, eles representam o Poder Judiciário, cujo processo preambular sempre foi por Delegado de carreira. Não obstante essa questão, eu reconheço a importância do MP, bem como a importância da advocacia.
A legislação brasileira é clara sobre essa distribuição de competências?
O Delegado deve presidir o inquérito. O MP não é melhor do que a advocacia. Temos, nos artigos 92 a 126, todas as funções da magistratura, e, depois, vêm as funções essenciais ao exercício da justiça. Em igualdade de condições estão o MP e a advocacia. Do artigo 127 ao 131, o MP; do 132 a 145, a advocacia pública e privada. O que vale dizer: a advocacia e o direito de defesa desempenham a mesma função essencial que o Ministério Público e a acusação; até porque não existe magistratura sem advocacia, nem MP sem advocacia. Não existe magistratura sem MP. Nenhuma das três funções essenciais para o exercício da magistratura podem existir sem as três figuras, e, na fase vestibular, formando o quarteto, temos o Delegado de Polícia.
Essa tentativa de tomada das funções do Delegado de Polícia pelo Ministério Público já chegou ao Supremo. Qual a expectativa?
Nós temos uma lei que estabelece a exclusividade do Delegado de polícia nas investigações policiais, sem interferência do MP. O MP entrou com uma ADI pretendendo considerar a lei inconstitucional. O Supremo ainda não se manifestou. Eu já dei um parecer favorável à constitucionalidade da lei. O ministro e ex-presidente do STF Carllos Veloso pensa rigorosamente como eu e está fazendo a defesa junto à Corte. Creio que essa ação deve efetivamente equacionar de vez esse problema das competências. O que alega o MP é que eles têm o direito de fiscalizar a PF, mas o controle externo, mencionado na Constituição, não significa o direito de presidir um inquérito policial. Eles podem fiscalizar, não só a polícia, mas todos os órgão da administração federal, estadual e municipal. Toda vez que há alguma violação à lei, eles podem, efetivamente no controle, fazer a acusação.
Como vencer essa confusão entre o que é controle externo e a prerrogativa de presidir a investigação?
O controle externo não é o direito de investigar, não é o direito de invadir competência, não é o direito de estar no lugar do outro. O MP não pode dizer assim: “embora a Constituição FEderal diga que os Delegados têm o direito de ser a polícia judiciária, nós vamos escolher as investigações que faremos no lugar deles”. Ora, isso não está na Constituição, isso é uma violação. A própria lei que o MP quer derrubar diz exatamente o contrário da pretensão deles. Essa é a razão pela qual eu estou convencido de que a decisão do Supremo nessa matéria, em que há contestação, vai reassentar, definitivamente, que a função do MP, embora extremamente relevante, não pode invadir competências que não tem.
Nesse contexto, a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição que garante a autonomia à Polícia Federal (PEC 412/2009), em tramitação na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, reveste-se de maior importância?
Eu entendo que essa autonomia é importante. Se nós damos autonomia ao Ministério Público, ao Poder Judiciário, à advocacia – que são funções essenciais da Justiça – se as outras instituições têm autonomia, por que não pode haver autonomia para o Delegado? No futuro, podemos ter governos que neutralizem definitivamente as funções da Polícia Federal, já que é um órgão do Executivo. Essa autonomia deve ser dada no mesmo nível que é dada ao Ministério Público, à advocacia e à magistratura, evidentemente, com a subordinação maior ao Poder Judiciário. Mas, subordinação apenas na definição de linhas de trabalho.
Sem a autonomia da Polícia Federal, o próprio enfrentamento à corrupção corre riscos?
Parece-me que, até hoje, por uma questão até de correto exercício democrático, não tem havido interferências do Poder Executivo, por exemplo, na Operação Lava Jato. Tanto o governo Dilma quanto o governo Temer não tem interferido nas investigações. Mas pode acontecer, pelo sistema existente de subordinação da Polícia Federal ao Ministério da Justiça, que, um dia, essa interferência se faça. Então, é correta a defesa de uma autonomia para a Polícia Federal nos moldes da autonomia das outras três instituições fundamentais para a administração da Justiça.