“Falta de transparência faz do Brasil um paraíso fiscal”
O Brasil ainda está longe de uma transparência eficaz no que diz respeito a crimes econômico-financeiros. É o que diz o presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, que esteve em Goiânia na semana passada para participar do Seminário sobre Crimes Financeiros e Combate à Corrupção, promovido pela entidade que dirige.
Em entrevista ao Jornal Opção, ele criticou a falta de mecanismos legais para que o Brasil entre no chamado primeiro mundo do combate aos crimes econômicos, como lavagem de dinheiro e evasão de divisas. E disse: para o ranking do Grupo de Acompanhamento Financeiro (Gafi), órgão mundial que segue as operações financeiras, o País ainda é considerado um paraíso fiscal. Natural então, que figuras como Ronald Biggs — o assaltante do trem pagador — e Juan Carlos Ramirez Abadía — o bilionário traficante colombiano — tenham escolhidos o território brasileiro para viver: muito dinheiro, pouca fiscalização e, se preciso, acesso às facilidades da corrupção.
O delegado também pede pela união de esforços entre os órgãos que combatem a corrupção e a lavagem de dinheiro, criticando a vaidade que cerca as grandes operações, como a Satiagraha e a Monte Carlo, e a disputa por sua autoria. “É preciso que mudemos a legislação e que trabalhemos juntos”, disse.
Elder Dias — O sr. vem a Goiânia para participar de um seminário que até inclui uma discussão sobre o mensalão, mas versa principalmente sobre lavagem de dinheiro. A quantas anda a legislação brasileira sobre esse aspecto?
Nós tivemos, em julho do ano passado, a alteração da lei sobre lavagem de dinheiro, que passou a ser mais moderna, mais condizente com a legislação internacional. É a Lei 12.683, que altera a 9.613 e traz muitas inovações. Por exemplo, agora há mais condições para que os órgãos do Estado possam verificar o cometimento do crime de lavagem de dinheiro. Por exemplo, dá mais poder ao Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras], que é responsável por verificar as informações financeiras, ao Ministério Público e à Polícia Federal, para que esta possa verificar informações de escritórios de advocacia e contabilidade. Agora passa a haver um maior intercâmbio entre todos os órgãos para saber se determinado patrimônio é lícito ou é fruto de atividade criminosa. Com o julgamento do mensalão, no fim do ano passado, a Ação Penal 470, pudemos fazer uma série de reflexões. O Supremo Tribunal Federal (STF) adotou uma posição mais progressista, mais de vanguarda, reconhecendo a lavagem de dinheiro em crimes de corrupção e condenando uma instituição financeira [o Banco Rural], o que é algo histórico e incomum no Brasil, ter um banco tendo seus gerentes e responsáveis condenados por esse tipo de crime. A ideia do seminário foi a de reunir profissionais do Direito — promotores, juízes, delegados, estudantes, profissionais da área de segurança — para que possamos fazer uma reflexão sobre o que há de novo na lei sobre lavagem, quais as novidades trazidas pelo caso mensalão e o que podemos esperar do Brasil doravante, sé é realmente uma posição de vanguarda, progressista, ou se aquilo foi um caso isolado. Será que os crimes financeiros de agora em diante vão ter o enfrentamento que o mundo espera de qualquer país desenvolvido? Não há condições de desenvolvimento humano sustentável enquanto não se combater a corrupção. O julgamento do caso do mensalão é emblemático, nele se encontra corrupção desde a administração pública até a corrupção político-eleitoral. O sistema financeiro do Brasil precisa se comprometer a ser instrumento facilitador do combate aos crimes financeiros e de lavagem e não servir a esses mesmos crimes. A questão é até que ponto os bancos vão assumir o enfrentamento desse tipo de crime e serem transparentes e colaborar com os órgãos do Estado? No caso mensalão há também situações de evasão de divisas, ou seja, de pessoas que mandam dinheiro para paraísos fiscais, ou para esconder a origem ilícita ou para fugir de impostos. Então, o processo do mensalão nos traz um conjunto de fatores que nos levam a uma profunda reflexão, desde a necessidade de uma reforma político-eleitoral até uma nova posição do sistema financeiro, passando por uma mudança de cultura de todos os operadores do Poder Judiciário. Será que essa posição de vanguarda do Supremo foi um caso isolado ou doravante poderemos esperar dos órgãos do Judiciário algo mais progressista e mais intolerante com esse tipo de criminalidade? Costumamos dizer que é um tipo de criminalidade que não é violento, mas, sim, econômica.
Elder Dias — Não chega a ser uma violência física, mas…
Sim, você não vai encontrar nela sangue, mas é uma espécie de violência social. É uma questão cultural: o Brasil tem sido intolerante com a violência física, mas complacente com essa violência social. Então, temos aí o desvio de recursos públicos de licitações, o empoderamento do Estado através de trocas de favores, tráfico de influência, lavagem de dinheiro, uso de doleiros, envio de riquezas para paraísos fiscais. Tudo isso é visto, infelizmente, como algo que não seria merecedor de tanta repressão quanto, por exemplo, a ação de um traficante. A posição da Polícia Federal é de que é preciso especializar, pois não é uma criminalidade fácil, precisamos de uma polícia mais profissional. O policial precisa entender de mercado, de câmbio, de transações financeiras, de paraíso fiscal. Precisamos nos especializar, assim como o Ministério Público precisa atuar em conjunto com a PF e não de forma paralela, isolada, de certa forma querendo assumir um protagonismo segundo o qual somente o MP é que faz acontecer. É preciso que assumam um sentido colaborativo. Se todos estivermos atuando juntos — Judiciário, polícia e Ministério Público —, já será difícil de enfrentar esse tipo de criminalidade, ainda assim, Imagine então se não tivermos uma ação conjunta, colaborativa.
Elder Dias — O sr. falou do aprofundamento da especialização e conhecimento pela polícia. Como tem caminhado, entre delegados e agentes da PF, esse tipo de expertise?
A polícia tem aumentado o número de operações contra doleiros, por exemplo. Há um crescente trabalho contra crimes financeiros e lavagem de dinheiro. Percebemos nossa dificuldade nesse mundo novo e criamos unidades de crimes financeiros, para esse enfrentamento. Delegados e outros policiais começaram a se especializar nessa área da criminalidade. A partir daí, eles mesmos passaram a comentar como era impressionante como a própria polícia não conhecia esse mundo a combater, como ele se mostra sofisticado, inovador, como ele a cada dia cria novas regras e mecanismos para dissimular, camuflar e mostrar que tudo aquilo é algo legal. O mundo da criminalidade econômico é pródigo em criar fatos novos. Com a criação de uma unidade especializada na PF temos cada vez mais profissionais pesquisando e escrevendo sobre o tema. Há gente fazendo especializações, mestrados e doutorados nessa área. O Brasil está começando a dar seus passos e, por isso, estamos buscando saber como tudo é feito mundo afora. Existe um órgão chamado Gafi, sigla para Grupo de Acompanhamento Financeiro, que monitora como é a questão das transações financeiras no mundo, a quem elas servem — ao político corrupto, ao empresário corruptor, ao traficante, ao terrorista etc. Assim, o mundo inteiro, por meio de convenções internacionais, começou a exigir que os órgãos sejam mais transparentes com suas transações. Vimos recentemente o caso do Vaticano, criticado por não ter uma política de transparência financeira. E o Brasil também não anda bem nesse item. O Gafi faz uma avaliação e recomendações, estabelecendo um ranking, no sentido de requisitos para fazer o combate a esse tipo de criminalidade. No Brasil, a unidade de acompanhamento das transações é o Coaf e a nova lei dá mais poderes a este. Mas também há retrocessos: existem ações no STF querendo diminuir o poder do Coaf. Baseiam-se no argumento de que os órgãos não podem compartilhar informações, porque isso feriria a noção de sigilo em geral — bancário, fiscal etc. Ocorre que no mundo todo a concepção é de que enquanto a informação está girando entre os órgãos do Estado — quando a Receita ou a empresa de cartão de crédito ou o Banco Central informa o Coaf — ela ainda está em uma esfera sigilosa, porque não foi repassada a terceiros. Então, no mundo desenvolvido isso não é quebra de sigilo. Quando a Receita Federal informa ao Coaf que o patrimônio de determinada pessoa está incompatível, no mundo isso não seria quebra de sigilo. Agora, se isso for utilizado para um procedimento administrativo ou criminal, aí sim, será necessária uma autorização judicial. Mas um grupo foi ao STF dizendo que isso constitui quebra de sigilo, querendo que até mesmo o intercâmbio de informações entre órgãos públicos também só se dê com decisão judicial.
Marcos Nunes Carreiro — Isso vale também para o sigilo telefônico?
É o mesmo raciocínio, só que, como nós tratamos de crimes financeiros, falamos em sigilo fiscal, bancário, patrimonial. Mas é a mesma coisa. Essa visão de sigilo que ainda existe no Brasil é muito conservadora. No caso de uma criminalidade desse tipo, defendemos uma posição diferente, porque não é um crime comum. Estamos falando de grandes organizações, que acabam mandando vultosas quantias para o exterior, que fazem falta ao País. Há sempre ondas conservadores, como a que agora quer restringir a ação do Coaf e impedir a troca de informações. Da mesma forma, de vez em quando se fala em repatriamento de recursos do exterior, com uma anistia para quem tem dinheiro lá fora não sofrer punição por aqui. Só que há estudos que indicam que o volume de recursos no exterior é considerável, faz falta. Isso dá para ter ideia de como é o potencial desse tipo de criminalidade.
Elder Dias — Existe uma estimativa de quanto o Brasil perde por evasão de divisas?
Nos dois projetos de pedido de repatriação, existe uma estimativa desse valor, do quanto se pensa que se pode trazer de volta. Isso está no Senado e um dos relatores é o senador Delcídio Amaral (PT-MS). Há duas correntes: uma defende que se libere para que tragam o dinheiro que está lá fora sem punição; e outra fala que isso é passar o atestado de que o crime compensa.
Elder Dias — O sr. partilha de qual pensamento?
A posição da Polícia Federal é contrária à liberação. Seria sinalizar muito erradamente.
Marcos Nunes Carreiro — No ranking do Gafi, como estaria o Brasil?
Há uma série de recomendações do Gafi, que, se não são seguidas pelos governos, colocam tal local como “país em risco”. Para se ter ideia, de acordo com o Gafi, o Brasil é paraíso fiscal. A gente sempre fala em Ilhas Cayman e outros lugares exóticos, mas, para o Gafi, até bem pouco tempo atrás nós éramos um paraíso fiscal, um local propício para lavagem de dinheiro, para fugir de impostos, para a corrupção. Com essa mudança na lei e a adoção de novo posicionamento do STF, além do aprimoramento da PF e do fortalecimento do Coaf, estamos sinalizando para o Gafi e para a comunidade internacional de que não somos um paraíso fiscal e que estamos fazendo o enfrentamento desse tipo de criminalidade. Mas ainda há uma onda conservadora no País que precisa ser superada como cultura. O ministro Joaquim Barbosa [presidente do STF] já disse que há muita falta de colaboração por parte dos bancos, assim como o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, também tem a mesma linha. É uma área em que há muito a se fazer. E não há como separar o joio do trigo: quem utiliza um doleiro é desde um empresário do crime do colarinho branco até o terrorista.
Marcos Nunes Carreiro — E quais as leis internacionais em que se baseiam esses princípios?
Temos as convenções internacionais. A primeira foi a Convenção de Viena (Áustria), depois a de Palermo (Itália) e, por fim, a de Mérida (Espanha). Na de Viena, a preocupação era com o tráfico de drogas. Já em Palermo, os países mais desenvolvidos perceberam que o tráfico de drogas havia se organizado de tal forma que passou a gerar risco ao Estado, se infiltrando e agindo como poder paralelo. Em nosso capitalismo global, essas organizações criminosas, terroristas, utilizam o sistema financeiro como meio para a prática criminosa. Por isso surgiu o Gafi, como forma de providência contra essas organizações, que passaram a ser um risco global. Em determinados países, tais organizações se infiltraram de tal forma que dizem que, se elas retirarem os recursos que têm, podem até quebrar o país.
Elder Dias — Seria o caso, por exemplo, da Itália?
Exatamente. Não há como separar o crime organizado violento do crime organizado econômico e político. Eles se entrelaçam. Já entrando nas operações Vegas e Monte Carlo, aqui em Goiás tem um exemplo perfeito disso: temos uma pessoa [Carlos Cachoeira] que é contraventor e, em determinado momento, passa a ter a necessidade de se apresentar como empresário.
Passamos a não saber onde termina o contraventor e onde começa o empresário. Não satisfeito e não querendo viver mais só da contravenção, essa pessoa passa a querer também fazer tráfico de influência no Estado, começa a fazer táticas de empoderamento e se infiltrar no sistema político-eleitoral. São coisas que estão tão entrelaçadas que não dá para pensar que é só jogo do bicho. Assim como o traficante não vai ficar só no comércio de drogas. Ele sempre vai querer se infiltrar no Estado, cada vez mais, para conseguir facilidades. A cabeça da criminalidade financeiro-econômica é de negócios e vai estar sempre pensando na seguinte questão: “onde eu ganho mais dinheiro?” ou “onde eu posso lavar meu dinheiro?” ou, ainda, “onde posso mandar meu dinheiro para não pagar imposto?” e “qual é o doleiro da moda?”. Então, esse doleiro trabalha para todo mundo: traficante, terrorista, empresário, político. Não há como dissociar essa criminalidade organizada, ela é perversa de qualquer forma, seja a física — a que mata e suja as mãos de sangue — quanto aquela socialmente tolerada, que vemos em colunas sociais, disputando cargos políticos. É essa a questão que devemos enfrentar. Em vários lugares do mundo o crime organizado financia campanhas de políticos.
Elder Dias — Aqui, talvez, não seja diferente…
(risos) Não é diferente, não. Financiam campanhas, e a troco de quê? Essa é a grande discussão, que não é só do Brasil, mas do mundo todo. Temos consciência de que o sistema é seletivo, para se livrar daquilo que se torna inconveniente.
Pessoalmente, não tenho ilusão: os grandes bancos do mundo, as grandes corporações, lavam dinheiro, corrompem, mas, quando outros passam a fazer a mesma coisa e causar prejuízos a seus interesses, essas corporações passam a querer enfrentar. Assim, não tenho a ilusão de que o Gafi não tenha seus limites. O sistema é seletivo, como eu disse, e entrega aqueles que são dispensáveis. Vez por outra, vamos encontrar alguém que se tornou indesejável ao sistema.
Elder Dias — Qual exemplo de “alguém indesejável” a esse sistema o sr. poderia citar?
Um exemplo é Carlos Cachoeira. Ele foi conveniente ao sistema durante muito tempo. Quando deixou de ser, foi descartado. Mas pergunto: será que ele era o único nesse sistema ou existe mais coisa? Será que foram ao fundo de tudo? Outro exemplo vem do mensalão. Será que o mensalão só se resume a isso que a gente viu e foi descartado? Estamos lidando com uma criminalidade tão poderosa que, ainda se Ministério Público, imprensa, Judiciário, polícia e a sociedade em geral estiverem todos juntos, mesmo assim nós vamos atingir só até determinado patamar. Além desse nível, se passará a atingir interesses tão poderosos que isso iria afetar o próprio sistema. Então, não é uma luta fácil e um evento como esse do qual participamos aqui em Goiânia é para despertar essa cultura. Quando se discute segurança e violência no Brasil, o que se pensa é em homicídios, em fronteiras. Não conseguimos ainda perceber como uma criminalidade organizada econômica e politicamente pode estar tão entranhada a ponto de se confundir com ele. E ela faz questão de ficar escondida, de ser tolerada. Precisamos mudar essa cultura de achar a corrupção algo aceitável. Ela mata tanto quanto qualquer crime violento, quando se desvia recursos da saúde ou da licitação, quando não se constrói estradas com qualidade, quando se frauda uma licitação. Isso não é natural, isso impede o desenvolvimento do País. A Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] fez uma pesquisa segundo a qual a corrupção é um fator impeditivo para o desenvolvimento do Brasil. Segundo esse estudo, 2% do PIB se esvai em corrupção. Vejam só como o sistema é interessante: quando a corrupção chega a um ponto em que o país não consegue mais crescer economicamente, o próprio sistema chega e diz que é preciso tomar uma providência, para poder ganhar dinheiro. Isso é óbvio: se o país não consegue se desenvolver, o empresário também vai ter dificuldade para ganhar dinheiro.
Marcos Nunes Carreiro — E o empresário tem feito sua parte?
Há uma cultura hipócrita que atinge o empresário. A gente tem de ser claro e dizer ao empresário não ele tem de pagar propina para ganhar uma concorrência. Ele não tem de se corromper para ganhar algum negócio. Pelo contrário, é preciso que ele denuncie os casos de corrupção. A partir daí eles começam a pensar e, talvez, a mudar de posição. Até agora, o que vemos é algo ainda sem regras objetivas. Vamos dar outro exemplo: qual empreiteira no Brasil já foi condenada? Talvez a gente tenha uma Gautama da vida, uma ou outra “descartável”, mas o que ocorre com as grandes empreiteiras, contra as quais a Polícia Federal já fez várias operações? Por um passe de mágica, quando essas investigações chegam aos tribunais superiores elas são anuladas. Outra questão, a dos bancos. Quantos bancos praticaram lavagem de dinheiro e quantos foram condenados? Tivemos algumas exceções, como o Banco Santos e agora o Banco Rural. O que vemos é que no Brasil alguns segmentos ainda são quase intocáveis. Há duas opções: ou a gente consegue atingi-los ou esses segmentos mudam de cultura. Por que essa cultura de que empreiteira tem de corromper e de que político tem de ser corrompido? O mundo diz que o Brasil ainda não avançou porque não tem uma lei que responsabilize civilmente a pessoa jurídica, o empresário. A Polícia Federal está fazendo sua parte, que é a de prender os servidores. Onde há um servidor, em corrupção passiva, lá está a PF. Mas, e o corruptor, aquele que está disposto a pagar? Esse ainda está em uma posição no sistema que é curiosa: ele chega a dizer que “eu paguei porque, se eu não pagar, eu não ganha”. Uma fala da ministra do STF Carmem Lúcia foi muito lúcida e gostei muito: ela alertou para o fato de as pessoas falarem abertamente, publicamente, sobre o caixa 2. Com a maior desfaçatez se diz “é só caixa 2”.
Mas caixa 2 é crime! (enfático) Então, o Brasil precisa repensar sua cultura em relação à corrupção. Ninguém financia uma campanha em troca de nada, vai sempre cobrar alguma coisa. Para a PF e para seus delegados, esse tipo de crime é tão ou mais importante quanto combater o tráfico de drogas. E mesmo no combate ao tráfico a gente já percebeu isso: a polícia vai pegando o que se chama de “manés”, mas o sistema diz: “daqui pra cima já não é mais um mané”. Dali em diante vem um empresário que lava o dinheiro do traficante, o doleiro que manda o dinheiro do traficante para um paraíso fiscal, o político que, de alguma forma se relaciona com esse traficante.
“Precisamos de um Ministério Público Federal menos vaidoso”
Elder Dias — Fernandinho Beira-Mar, então, seria um “mané”?
A sociedade vê ainda figuras como ele como violentas. Aquele que é mostrado como violento se torna inconveniente aos olhos da sociedade. Sua prisão é uma forma de o sistema estar dizendo que o tráfico está sendo combatido. A história da Polícia Federal é curiosa em um aspecto. No mundo todo, o enfrentamento do tráfico de drogas foi incentivado, principalmente pelos Estados Unidos. Houve o financiamento de polícias para o combate ao tráfico. Com a PF, não foi diferente. Durante muito tempo, a polícia teve assistência técnica dos órgãos de segurança e de inteligência americanos. A PF iniciou seu avanço tecnológico e científico com o tráfico de drogas, fomentado pelos americanos. Mas as mesmas técnicas e recursos que usamos para enfrentar os traficantes encontram-se, lá na frente, com a corrupção política, econômica, o crime financeiro, a lavagem. Não sei como se deu, mas essas mesmas técnicas e capacitação contra o tráfico foram úteis também para começar a dar uma guinada a essa criminalidade no âmbito econômico. Do primeiro governo Lula para cá, a PF deu uma guinada nesse sentido. Sou até um pouco radical nesse sentido, mas acho que o tráfico de drogas e de armas é o “feijão com arroz” da Polícia Federal. O grande desafio são os crimes econômico-financeiros e que envolvem também a política. Quando a Polícia Federal resolver fazer essa virada conseguimos executar grandes operações e a sociedade aprovou. Só que isso incomodou, porque começamos a entrar em uma parte do sistema que não está muito interessada em ver apuração daquilo que ocorre por ali. Na Operação Satiagraha, quando se pega um Daniel Dantas, por exemplo. Já não é mais um mané, não é um Fernandinho Beira-Mar, que não tem ninguém que fale por ele. No caso de Carlos Cachoeira, da mesma forma. A sociedade é, de certa forma, tão hipócrita que, quando o fato vem à tona, não há surpresa. Quem em Goiânia ou em Brasília não conhecia sua atividade de contravenção? Quem não conhecia suas relações políticas? Às vezes as pessoas nem faziam questão de esconder nada, se diziam amigas, falavam de suas relações normalmente. Ninguém se incomodava de aparecer na foto com Cachoeira, porque não estavam com o contraventor, mas, sim, com o empresário. É bem diferente de tirar uma foto no Morro do Alemão com alguém segurando um AR-15. Se aparecer, nesse caso, é execrado.
Marcos Nunes Carreiro — O que falta para todos os órgãos atuarem juntos no combate à corrupção? O que falta para a união entre a PF e o MPF? O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, chegou a dizer que, se não fosse pelo Ministério Público, os mensaleiros não seriam condenados. O que falta para juntar as forças?
A declaração do procurador Roberto Gurgel, ela foi infeliz, porque estamos falando de um assunto em que não há salvador da pátria. O resultado do mensalão só foi possível por conta de uma imprensa livre, que sempre cobrou; por um julgamento público, transmitido em tempo real; pelo ativismo das redes sociais; pela própria CPI dos Correios, que ajudou muito na questão do mensalão; a PF, que, durante o julgamento, foi apresentada na leitura dos ministros, quando eles diziam “os laudos da Polícia Federal…” ou “os laudos do Instituto de Criminalística…”. Então, Gurgel foi extremamente infeliz porque acabou menosprezando a própria sociedade. Se ele tivesse dito que o mensalão não seria julgado se não houvesse pressão da sociedade eu concordaria. Se eu falar que Roberto Gurgel pediu o arquivamento do caso de Antonio Palocci. A PF tinha feito toda uma investigação e entregou para ele. Ele, Gurgel, disse que não via crime e mandou arquivar. Posso dizer que terminou em pizza? Gurgel tem vários processos de uma família muito conhecida no Brasil todo e que ninguém consegue condenar, porque tudo é anulado quando chega aos tribunais, que ele também não quer botar para frente. Em relação à Operação Vegas, o sr. Gurgel não explicou até hoje o que fez com a investigação. Ele nem arquivou, nem passou adiante. Que relação tinha o Ministério Público com o sr. Demóstenes Torres? Ele foi útil ao MPF durante anos, foi o grande defensor do MPF no Congresso Nacional.
Na Operação Monte Carlo, assim que foi desencadeada, a imprensa se apressou em dizer que era uma operação do Ministério Público. Eu tenho dez anos de PF e nunca vi uma operação do MPF sem um trabalho prévio da Polícia Federal, desconheço totalmente. Assim como o mensalão, a Monte Carlo também foi um trabalho de todos. O que precisamos é de um MPF menos vaidoso e mais colaborativo com a Polícia Federal e com o Judiciário. Temos um problema sério com o MPF de ele querer fazer tudo sozinho. Isso é só vaidade, a sociedade quer é ver o caso esclarecido. Assim também precisamos de juízes que avancem, que mudem de cultura, para dar resposta a essa sensação de impunidade no País. Temos avançado na magistratura de primeiro grau, mas há dificuldade muito grande nos tribunais superiores. Por isso é que a posição do STF no mensalão foi de vanguarda, surpreendendo até os advogados. Não se esperava o que aconteceu, até por conta do histórico.
Marcos Nunes Carreiro — E como se pode avançar? É por meio de novas leis?
Primeiramente, é necessária uma renovação na legislação, que precisa espelhar o que há de mais moderno nos países desenvolvidos. Nossas leis precisam atender aos compromissos assumidos nas convenções de Viena, de Palermo e de Mérida e ao que pede o Gafi. É preciso dizer ao mundo que os compromissos serão cumpridos, com leis mais modernas contra a lavagem, contra as organizações criminosas. Para isso precisamos de um Legislativo mais comprometido, essas leis estão paradas no Congresso. Precisamos também de uma lei que trate dessa questão da corrupção e do corruptor. A questão da pessoa jurídica e a da regulamentação do lobby também precisam ser discutidas. O jogo político de pressionar é algo democrático, o lobby existe abertamente nos Estados Unidos. Há a pressão das entidades de classe, dos movimentos sociais etc. O que não se pode é entrar na zona do tráfico de influência. Tudo isso são leis que estão paradas no Congresso. O Brasil não enfrenta o desafio de fazer uma grande reforma política, de questionar o financiamento das campanhas, porque o corrupto de amanhã nasce nas campanhas eleitorais. Quando falo de corruptor e de corrupto, também precisamos fazer uma ligação entre político e eleitor. Diz-se que o eleitor é um pobre coitado, que se corrompe porque é um coitadinho. Não é assim nos países que enfrentaram isso de modo sério. Guardadas as devidas proporções, a pessoa sem instrução também sabe o que está fazendo, tem consciência daquilo naquele momento. Infelizmente talvez não saiba os graves prejuízos que isso vai ocasionar lá na frente.
Elder Dias — A visão de “coitadinho” dada ao eleitor é pode ser igualada à de um agente público que se deixa corromper?
A relação entre corrupto e corruptor não tem diferença, seja qual esfera for em que acontecer.
Elder Dias — Mas não exista nenhuma lei que puna o eleitor que venda o voto…
Existe, sim. A legislação eleitoral permite essa punição. E alguns juízes em uma posição mais vanguardista já dizem que vão punir tanto o candidato quanto o eleitor. Um exemplo caro: em uma eleição para prefeito, ele dá uma vantagem ao eleitor, que, depois do pleito, denuncia o fato. A legislação permite que se puna os dois, mas geralmente, se há um punido, é somente o candidato.
Marcos Nunes Carreiro — E como o sr. avalia hoje o trabalho da Polícia Federal?
Costumo dizer que a PF apanha sempre dos dois lados quando faz uma operação, tanto daqueles que dizem que estamos acobertando alguma coisa quanto daqueles que estamos fazendo o jogo da oposição. Quando isso acontece ao mesmo tempo, do governo e da oposição, é porque a operação está bem encaminhada (risos). Posso dizer que a PF está isenta de sofrer influências? Claro que não, nenhuma instituição do sistema está. Basta dizer que há membros do MP escolhidos pelos governadores, ascensão do quinto constitucional aos tribunais, também pelos governadores. Isso faz parte das instituições, o que é preciso é aprender a cortar na carne, que sejam implacáveis e transparentes. Minha instituição, a PF, é das que mais demitem no serviço público federal, só menos do que o INSS, que também vem cortando na própria carne — o que, justiça seja feita, tem feito diminuir o número de fraudes ao longo dos anos. Aí eu pergunto: quantos promotores foram demitidos?
Elder Dias — O corporativismo é muito maior, por exemplo, no Ministério Público?
No Executivo em geral, o corporativismo é bem menor do que nos outros Poderes. O Executivo o Poder que mais demite. Não temos histórico de aposentadoria compulsória, é rua mesmo. Está aí a situação de Demóstenes, que é escandalosa, não se sabe se ele vai trabalhar, se vai ser aposentado ou se vão demiti-lo.
Elder Dias — E dentro desse sistema de tantas garras, como fica um delegado diante das pressões?
Hoje um delegado sabe que, se sofrer pressões, tem a imprensa a seu lado. Muita gente diz que, ao fazer uma operação, a PF foi espetaculosa. Ninguém percebe é que, naquele momento, era preciso ser espetaculoso.
Elder Dias — Por quê?
Porque é preciso trazer a imprensa para junto de si e ganhar forças para enfrentar graves interesses econômicos e políticos. Sem a imprensa, talvez muitas coisas terminassem em pizza. E o Brasil está avançando a um nível de liberdade democrática que esse papel da imprensa vai ser cada vez mais exaltado. Isso é excelente, porque a independência das instituições não vem de um controle interno, mas da cobrança da sociedade, do controle social. Por exemplo, o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] não é controle social, é um grupo de juízes disciplinando o próprio Judiciário, a mesma coisa que o CNMP [Conselho Nacional do Ministério Público] faz. E a PF apanha de todos: do Ministério Público, dos juízes, da imprensa, dos políticos etc. Mas isso é bom, porque vamos nos amadurecendo cada vez mais. Mas hoje a PF deixou de ser espetaculosa, porque o sistema já se armou contra isso, trazendo esse discurso. E, agora, a própria imprensa ora bate ora assopra. A mesma revista que estampava “Os homens de preto” agora diz que somos espetaculosos e que servimos a isso ou àquilo. Obviamente, a imprensa é sujeita também ao poder econômico.
Marcos Nunes Carreiro — Como a imprensa faz essas críticas à polícia? Tem exemplos?
Vamos citar, no caso, a Operação Porto Seguro. Nela, havia corrupção e uma série de crimes, mas a imprensa foi lá apenas para saber de um suposto envolvimento do ex-presidente Lula. Queriam atacá-lo de toda forma. Aí disseram que a PF acobertou. Mas só que a operação é feita em conjunto com o MPF e com o Judiciário. Como poderíamos acobertar alguma coisa? O próprio MPF disse que não houve indícios [de envolvimento de Lula]. Mas há sempre um uso político e se torna, então, comum acusações de que a polícia estaria protegendo alguém, no caso o ex-presidente. É engraçado, porque, na época da Operação Porto Seguro, o PSDB dizia que seu governo tinha ajudado a PF a chegar a esse nível e o pessoal do PT dizia que a PF estava nesse nível por conta de seu governo. Ótimo então, porque se todos estão querendo ser pai da criança, deve ser porque ela está bem de saúde. (risos)
Elder Dias — Em Goiás temos o caso de um profissional da imprensa que foi morto na porta da rádio em que trabalhava, à luz do dia, por causa de suas opiniões em relação à diretoria de um clube de futebol, segundo apontaram as investigações da PF. Como há pessoas poderosas acusadas do crime, percebe-se certa dificuldade de seguir o processo. Não seria o caso de ser um crime federalizado, não somente pelo fato de ser um crime contra a imprensa, mas também por haver uma influência sobre o Poder Judiciário?
Hoje a legislação vigente no Brasil não permite essa interpretação, o que haveria somente em caso de violação dos direitos humanos. Pelo mundo, existem países que tipificam crimes contra a liberdade de imprensa como violação dos direitos humanos. Há um projeto de lei do deputado federal e delegado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) nesse sentido. A PF poderia atuar se houvesse caracterização de grupos de extermínio, as chamadas milícias, porque normalmente tem sido verificado que é o próprio aparelho estatal local que pratica esse tipo de crime. Mas o caso de jornalistas que denunciam determinados fatos e por isso são mortos é, para mim, de forma clara, uma violação à liberdade de imprensa. Só que precisamos de uma legislação mais específica, para não ficar uma interpretação caso a caso.
Elder Dias — O sr. disse que o mensalão pode ou não pode se tornar um caso isolado na história do STF. O que o sr. acha que vai acontecer?
Eu espero que não seja, mas só o futuro vai dizer. Teremos o julgamento do mensalão mineiro. A expectativa é de que não seja uma ação isolada, mas a primeira de muitas decisões. A decisão sobre o mensalão é muito interessante, principalmente pela teoria do domínio do fato. No caso do goleiro Bruno, acusado da morte da modelo Eliza Samudio, ele, que recebeu a menor pena entre os condenados, seria o apenado com maior punição. Por essa teoria, o maior responsável não é quem executa, mas quem conduz para que tudo ocorra daquela forma. Não há nada que prove diretamente, um ato executório. Foi o que pegou José Dirceu, mas não prevaleceu contra Bruno.
Elder Dias — O paraíso fiscal dos brasileiros é, entre outros, as Ilhas Cayman. E o Brasil, é paraíso fiscal de quem?
Isso é até clichê de filme americano: alguém comete crimes e vem para a Venezuela ou para o Brasil. Na vida real temos casos clássicos, como Ronald Biggs, que assaltou o trem pagador na Inglaterra e veio para cá; Tommaso Buscetta, que denunciou daqui a máfia italiana. Juan Carlos Ramirez Abadía, o traficante bilionário da Colômbia, é um exemplo claro: ele veio para cá por saber que era um país em que ele poderia viver incógnito, corromper pessoas e camuflar seu dinheiro. O Brasil é, sim, considerado um paraíso fiscal, por causa de sua falta de transparência. O mundo está mudando e o Brasil precisa mudar também.