Notícias de uma guerra particular
Os aspirantes a oficial do Bope, Neto e Matias, foram indicados por ele. Vão usar a farda preta e o símbolo do Bope, uma caveira indicativa da morte, tatuada no corpo de Neto. O treinamento é um espetáculo de agressividade, até nas letras de hinos que acompanham o treinamento. “Tem guerreiros, que matam guerrilheiros”. Eles cantam: “Homem de preto/ Qual é a sua missão?/ É invadir favela/ deixar corpo no chão”
Os aspirantes têm que comer a comida jogada ao chão em dez segundos. Berros de comando e retaliação aos candidatos corruptos, como o personagem do capitão Fábio, definido em resumo, como “um cafetão, protetor de clínicas de aborto”.
Tapas na cara, conversa ao ouvido sobre a sua condição de corrupto, tentando ingressar no Bope.
– Tem que sair…
– Pede para sair…
Mais tapas.
– Pede para sair…
– Eu desisto.
O capitão Nascimento, que cultua a palavra estratégia, pára de bater e gritar “pede para sair…”. Aplausos de quem resta no grupo em instrução, todos chamados pelos seus números. O número 2, corrupto, também desistiu.
– Pede para sair…
A abertura de Notícias de uma guerra particular mostra viaturas da Polícia Civil transportando drogas para incineração em um ferro-velho no Caju. Todo mês, na no fim dos anos 90, eram queimados de 200 quilos a até 3 toneladas de maconha e cocaína.
O narrador informa que – na realidade de hoje, certamente muito mais – “uma pessoa morre a cada meia hora no Rio, atingida por bala de grosso calibre”. Segundo a Polícia Federal, conta o documentário, o narcotráfico empregava cerca de 100 mil pessoas – igual número, então, de funcionários da Prefeitura da cidade. “Nem todos os traficantes estão nas favelas, mas é nelas que se concentra especialmente a repressão”.
O mesmo capitão Nascimento, do Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), diz em Notícias de uma guerra particular que tem, como policial, um sentimento dúbio, reproduzido assim por ele:
– Às vezes, sinto-me invencível. Outras, com medo. Sei que estou participando de uma guerra, mas eu volto para casa todo dia.
A influência do tráfico nas favelas
Garoto desce o morro ao som de rap, que vai cantando. “Para subir no Jockey até o Bope treme/ não tem mole para a Civil nem para a PM” (…)
O nome do filme trata da seqüência da violência. O policial mata o traficante hoje. Em seguida, o bandido quer matar o policial, num cotidiano de violência sem fim. Por isso, refere-se a uma guerra particular.
Adriano, 21 anos, encapuzado, afirma que “não quer que ninguém sofra, como sofreu quando era pequeno”.
– Se roubo ou já roubei, é porque tenho de comprar comida para minha família.
Hilda, moradora da favela, e seu marido Adão, são personagens que conduzem parte relevante da narrativa do filme:
– Antes de existir o tráfico, a polícia entrava aqui e metia o pé na porta. Hoje tem mais cautela.
Adão percebe os traficantes dos chamados Comando Vermelho e do 3º Comando assim:
– São como dois animais ferozes, que ficam medindo forças entre si. Não ajudam não…
Em Notícias de uma guerra particular, mães, irmãos, primos e vizinhos acompanham a detenção de um jovem. A Polícia Civil quer levá-lo morro acima em vez de ir para a delegacia. Pode ser executado, mas os policiais desistem. Os moradores comemoram.
Hilda revela que as “cocotas lá de baixo” – definindo-as como belas garotas – têm forte atração por um moleque com arma pesada. Nem ela nem Adão entendem a razão.
17 de setembro de 2007
Para Hélio Luz, a sociedade quer uma polícia corrupta
Para o delegado aposentado Hélio Luz, ex-chefe da Polícia Civil e ex-deputado estadual do Rio, o tráfico paga três vezes mais que um salário mensal para seus empregados. Por semana.
– É um negócio, não é uma opção. Só não aceita quem nunca passou fome. O tráfico é uma empresa ilegal. O Estado deixa aquilo lá – uma área de exclusão.
Em outra cena, no Instituto Padre Severino, menores são vistoriados. “Agacha”, “levanta a mão”… são algumas ordens. Um deles fala:
– Fui detido. Estava abaixado. O PM pediu para eu ficar de pé e atirou na minha perna.
Outras palavras:
– Prende, não leva para a delegacia, tenta extorquir. Não vai ganhar só o salário dele.
O delegado Hélio Luz sustenta no filme que a polícia é corrupta.
– Foi criada para fazer a segurança da elite. Tem que manter a favela sob controle. É uma polícia política, de uma sociedade injusta.
Hilda lamenta que, às vezes, a polícia não sobe o morro para prender. “Sobe para matar”.
Para o delegado, não existe violência sem controle no Brasil. Diz, rindo, que gosta de observar um shopping em São Conrado, entre duas favelas – Rocinha e Vidigal.
– Se fosse violento, existiria isso? A sociedade quer polícia que não seja corrupta?
Luz diz que trabalhou no interior, teve dois meses de bom tratamento mas deixou de ser convidado para “o jantar” da sociedade.
– Encrencou quando autuei um fazendeiro que tinha cometido um homicídio.
Ele exemplifica que, sem corrupção, a polícia terá de atuar igualmente na favela e em Ipanema. “Vai ter de parar de cheirar (cocaína). Vai ter pé na porta na Delfim Moreira (Leblon). Polícia sem corrupção não tem limite. A sociedade quer isso?”
Em outro momento, um traficante diz que o pobre não tem condição de gastar R$ 1 mil para cheirar cocaína, porque no dia seguinte seu filho passará fome. “O rico é quem dá o dinheiro que arma o tráfico. Mas depois reclama da violência”.
O Bope mostra suas armas no filme – modelos de guerra, um deles sequer usado em Israel e nos EUA. O tráfico também mostra as suas.
– A gente não vende armas, mas eles (policiais) vendem… – o traficante ri.
Hélio Luz vai além:
– O lucro do narcotráfico e o da venda de armas estão próximos.
Em resumo, questiona a necessidade de produção de armas na Suíça e nos EUA, referindo-se ao exemplo de um fuzil de 700 tiros.
– É porque os fabricantes conhecem o mercado daqui. Os EUA querem o fim do plantio de drogas, deveríamos pedir o fim da produção de fuzis AR-15, da Colt.
A sorte da sociedade, segundo ele, é que os traficantes são desorganizados, despreparados, primários. Outro personagem diz que a maior parte das lideranças de gangues está presa. Na tela, fotos de Apolinário Souza (Nanai), Jorge Luís (de Acari) e Uê, todos presos. A maioria já morreu.
– O narcotráfico não tem nível para substituir o Estado no morro. Isso é cascata.
Notícias de uma guerra particular tem ainda a história de menino que entrou no tráfico aos 11 anos. Ele diz que já queimou, entre pneus, um entregador de drogas que deu informação para a polícia. Tem também o “Zinho”, menino de 10 anos, dizendo que a mãe, nervosa, “vendeu os filhos dela”. Conta que é olheiro do tráfico.
O final do filme é simbólico. Depois de novas cenas de tristeza, vão aparecendo nomes e mais nomes de traficantes, policiais e meninos de rua mortos. Não há mais espaço. Letras se sobrepõem. A tela fica negra.