O acesso a dados cadastrais de investigados por policiais, independentemente de autorização judicial.
Com o crescimento dos trabalhos investigativos na seara de crimes financeiros, tributários e de desvio de recursos públicos, entre tantos outros de atribuição das Polícias Judiciárias, houve o proporcional aumento na persecução criminal de entes privados e agentes públicos de notoriedade no cenário nacional.
Acompanhando este viés da responsabilização penal, tem-se observado o exponencial acréscimo da contestação das formas e dos meios empregados por investigadores para formar uma convicção quanto à materialidade e à autoria dos delitos, notadamente, daqueles conhecidos como crimes “de colarinho branco”.
Teses e doutrinas que se alicerçam sobre a faceta NEGATIVA do Garantismo Penal de Luigi Ferrajoli, a qual se caracteriza pela limitação da atuação estatal frente à liberdade individual, ganharam força entre doutrinadores nacionais e passaram a ser encaradas por muitos juristas como a única vertente de uma doutrina, o Garantismo, reconhecida pela simbiose deste com a principiologia de um Estado Democrático de Direito, influenciando a jurisprudência, principalmente dos Tribunais Superiores, que passou a impugnar uma série de provas e a anular inúmeras investigações, concebidas a partir de procedimentos de inteligência empregados para acompanhar a evolução da perpetração do delito.
Nesse sentido, surge, entre tantas, a celeuma sobre a (im)possibilidade de policiais, nos autos de inquérito policial, terem acesso a dados cadastrais de pessoas, físicas e jurídicas, no interesse da investigação criminal, sem prévia autorização judicial.
Aqueles que defendem a impossibilidade deste acesso utilizam como argumento maior uma interpretação Garantista NEGATIVA das normas dos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal, clamando pela inviolabilidade da intimidade e da vida privada, ou inferindo que, além do sigilo das correspondências, das comunicações telegráficas, telefônicas e de dados, também seria inviolável o acesso a bancos de dados, excetuando estas regras, apenas, pela existência de uma autorização judicial.
Ocorre que, ao analisar a inteligência destas normas constitucionais, verifica-se que sua redação busca uma salvaguarda, um direito fundamental a: 1) intimidade, honra, vida privada e imagem das pessoas, cujo acesso e utilização que resulte em dano, material ou moral, acarreta um direito à indenização; 2) intimidade das pessoas, a partir dos meios que estas utilizam para se comunicar, livrando-as da indesejada e corriqueira publicidade que sua interceptação poderia acarretar acaso esta ação só não fosse possível após o pronunciamento judicial.
Ora, o comando constitucional é claro, reconhecendo amplitudes distintas do direito à intimidade. Na primeira norma, isto é, no inciso X, o constituinte quis assegurar o direito à indenização por dano decorrente da violação à privacidade e, ao contrário do inciso XII, não qualifica de ilegal ou inconstitucional o acesso a dados pessoais que não derivem de autorização judicial, notadamente quando acessados para fins legítimos como, por exemplo, a instrução de investigação policial, visando a maior eficácia e celeridade na instrução criminal.
Além de não desqualificar o acesso e a utilização legítima dos dados pessoais obtidos independentemente de decisão judicial, deve ser ressaltado que a norma do inciso X quis reconhecer como direito constitucional o direito à indenização por dano a toda e qualquer dimensão do direito à privacidade, enquanto que a norma do inciso XII ressalta que o acesso à dimensão do direito à privacidade, que se manifesta através dos meios que as pessoas utilizam para se comunicar, só será legítimo, legal e constitucional quando for deferido judicialmente.
Acredita-se que uma interpretação unívoca de um Princípio que é e deve ser plural acarreta distorções na forma de interpretar e de aplicar o Direito, dissociando-o da realidade e dos anseios sociais, a exemplo dos argumentos que estendem a cláusula de reserva de jurisdição para o acesso a dados cadastrais pelos órgãos incumbidos da persecução criminal. Assim, é forçoso reconhecer a patente necessidade de oxigenação do Garantismo Penal, trazendo às demais perspectivas de um adágio indispensável para entender e exercer Segurança Pública.
Nesse contexto, torna-se salutar estudar e divulgar a faceta POSITIVA do pensamento de Ferrajoli, a qual defende que um Estado Democrático de Direito pode munir seus prepostos de estruturas ágeis e eficazes para assegurar o direito fundamental à segurança pública, sem que esta atuação implique desprezo aos demais direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
A hipótese aqui assumida é a de que, com o reconhecimento da importância desta face do Garantismo, que tem sido negligenciada por uma considerável parcela dos juristas pátrios, ocorra a inversão da crescente tendência de impugnação de grandes trabalhos de inteligência policial, questionados pelos métodos investigativos empregados para gerar certeza quanto à materialidade e à autoria do crime.
É bem verdade que louváveis iniciativas com teor Garantista POSITIVO foram tomadas recentemente pelo Legislativo Federal, reconhecendo a inoperância de métodos investigativos que foram burocratizados pelos Tribunais, através da judicialização não prevista pelo constituinte, e que vinham inviabilizando a eficácia da persecução criminal. São exemplos o artigo 17-B da Lei nº 9.613/1998, com redação dada pela Lei nº12.683/2012, e o artigo 15 da Lei nº 12.850/2013, as quais dispõem, respectivamente, sobre os crimes de Lavagem de Dinheiro e de Organização Criminosa, que previram expressamente o acesso a dados cadastrais do investigado pelos delegados de Polícia e pelos membros do Ministério Público, independentemente de autorização judicial.
Nesse sentido, emerge uma nova discussão, também galgada pelo dualismo do Garantismo NEGATIVO e do Garantismo POSITIVO, materializada na (im)possibilidade de os delegados de Polícia e os membros do Ministério Público terem acesso aos dados cadastrais não apenas de investigados pela prática de crimes de lavagem de dinheiro e de organização criminosa, mas para todo e qualquer delito.
Apesar de a Lei nº 9.613/1998 e a Lei nº 12.850/2013 não serem claras sobre esta celeuma, acredita-se que a doutrina majoritária e a jurisprudência de nossos Tribunais, mais identificadas com a face NEGATIVA do Garantismo Penal, tenderão a não reconhecer a extensão desta prerrogativa aos gestores da investigação criminal.
Não obstante esta última previsão, pelo menos para aqueles que presidem trabalhos investigativos na seara de crimes financeiros, tributários e de desvio de recursos públicos, a batalha pelo reconhecimento de um Estado de Direito que não reconheça apenas direitos individuais, mas também da coletividade, tende a ser menos árdua.
Pela nova formatação dos crimes de lavagem de dinheiro – cuja incidência não mais depende da pré-existência de um pequeno número de delitos – e pelo conceito fluído, extrema e oportunamente aberto, do crime de organização criminosa – cujo requisito de ordem objetiva baseia-se tão somente na associação de 4 ou mais pessoas -, há a possibilidade de valer-se das novas normas processuais em investigações criminais que tenham como finalidade primeira a apuração de outros delitos, mas que, subsidiariamente, de uma ou de outra maneira, podem ser utilizadas para buscar, também, indícios de materialidade e da autoria dos delitos insertos em uma destas duas Leis, justificando, assim, sua aplicação.
Ora, é difícil imaginar alguma investigação para apurar a ocorrência de crimes financeiros, tributários e de desvio de recursos públicos em que o investigado não tenha se associado a pelo menos outras 3 pessoas, com um mínimo de organização e divisão de tarefas e, necessariamente, não tenha ocultado ou dissimulado a natureza, origem, localização, movimentação ou propriedade do produto da infração penal (núcleos do tipo dos crimes de organização criminosa e de lavagem de dinheiro). Justifica-se, assim, o acesso aos dados cadastrais de investigados em procedimentos inquisitoriais cuja notícia crime, não necessariamente, tenha informado sobre a existência de delitos insertos nas Leis nº 9.613/1998 e nº 12.850/2013, mas que subsidiariamente os investigados também sejam enquadrados.
Por fim, cabe ressaltar, novamente, a grande diferença existente entre sigilo de dados e de interceptação telefônica, recaindo a cláusula de reserva de jurisdição apenas à interceptação telefônica, sob pena de se inviabilizar uma eficaz prestação ao direito constitucional à segurança pública e de se atentar contra as faculdades investigatórias dos órgãos com o múnus da persecução criminal, submetendo-os à reserva de jurisdição que não foi prevista expressamente na Constituição e na legislação ordinária.