O Brasil pode erradicar a corrupção
Declínio, devassidão e indecência. As palavras mais usadas pelos dicionários para definir corrupção envolvem um incômodo tipo de decadência moral. Pesquisas recentes revelam que a corrupção é o principal motivo de vergonha dos brasileiros, acima da violência e da pobreza. Essa grande vilã é ainda mais nefasta por ajudar a perpetuar a miséria e a criminalidade. Com a corrupção, interesses pessoais se sobrepõem aos coletivos. O bem comum dá lugar ao enriquecimento ilícito de poucos.
Experiências internacionais mostram que combater a corrupção é o primeiro passo para conter o crime organizado e também para criar instituições sólidas em todos os países. É fato que o Brasil progrediu nesse campo. Desde a Constituição de 1988, os procuradores do Ministério Público podem agir de forma independente na fiscalização de políticos e funcionários públicos. O Congresso também tem ampla liberdade para investigar o governo. Há órgãos atuantes na fiscalização das contas públicas, como a Controladoria-Geral da União (CGU) ou os tribunais de contas. Já flagramos parlamentares, governadores, prefeitos e até um presidente Fernando Collor, que sofreu impeachment.
Esse avanço institucional se dá de modo gradual. À medida que as denúncias iluminam o submundo da política e da burocracia estatal, a descoberta de novas brechas para a corrupção permite aperfeiçoar ainda mais as instituições. Nesta primeira edição de ÉPOCA Debate, procuramos entender como o Brasil tem avançado no combate à corrupção e o que falta para que o país consiga debelar esse problema secular.
Investigar, identificar e prender suspeitos é o primeiro passo no combate aos corruptos
A maior novidade dos últimos anos no combate aos corruptos tem sido a ação da Polícia Federal. Com operações de nomes estrepitosos como Gafanhoto, Gato de Botas, Cavalo de Tróia, Sanguessuga ou Navalha, a PF foi a instituição que mais avançou no combate à corrupção. Entre 2003 e 2006, foram desbaratadas organizações criminosas que movimentaram mais de R$ 50 bilhões e fizeram o país perder, em desvio de dinheiro e sonegação fiscal, mais de R$ 18 bilhões, o equivalente ao orçamento anual do Estado do Paraná. Em muitos casos, a PF foi acusada de cometer exageros e de transformar suas operações em espetáculos televisivos. Mas o salto institucional é indiscutível. Rompemos com a inércia do imaginário do cidadão. Hoje, todos estão conscientes de que podem ser alcançados pelo Estado, diz o diretor-geral da PF, Luiz Fernando Corrêa. Esquemas de desvio de dinheiro público, antes considerados um aspecto inerente à burocracia estatal, passaram a ser investigados, denunciados e desbaratados, sem poupar empresários, juízes ou políticos.
Investigar, identificar e prender suspeitos é, porém, apenas o primeiro elo da corrente de combate aos corruptos. Condená-los a penas severas na Justiça é o passo seguinte e é nesse ponto que o Brasil tem falhado. É isso o que mostra o mais completo levantamento já realizado no país sobre as investigações da Polícia Federal nos últimos anos. Durante três meses, ÉPOCA pesquisou, uma a uma, todas as 292 operações realizadas pela Polícia Federal entre junho de 2003 e dezembro de 2006. Dessas, 216 se referiam a casos de corrupção, com o envolvimento de agentes e órgãos públicos (são esses os casos apresentados no quadro que percorre as próximas páginas). O levantamento não incluiu as operações realizadas a partir de 2007 o critério foi averiguar apenas as operações com intervalo de tempo suficiente para que os processos na Justiça chegassem, pelo menos, ao fim de julgamento na primeira instância. Para medir o resultado das operações da PF, a reportagem entrevistou mais de uma centena de delegados, procuradores e juízes envolvidos nessas ações. Decantou cada inquérito entregue pela PF ao Ministério Público e as denúncias remetidas para os tribunais de Justiça. O objetivo era descobrir quantos presos, afinal, foram efetivamente condenados e punidos com cadeia. As conclusões foram as seguintes:
– nas 216 operações, a Polícia Federal prendeu 3.712 pessoas para averiguação
– entre elas, havia 1.098 funcionários públicos (107 da própria PF)
– apenas 432, ou 11%, tinham sido condenados pela Justiça em primeira instância até o fim do ano passado
– dos condenados, só 265 realmente estavam cumprindo pena de prisão até o fim do ano passado 7% de todos que foram detidos.
Tradução: de cada cem suspeitos detidos pela polícia, apenas sete acabaram na cadeia. Esses números revelam a ineficiência da Justiça em punir com rapidez. Eles sugerem que o Brasil, no combate à corrupção, vive a clássica situação do copo cheio pela metade: ele está meio cheio, mas também meio vazio. Avançamos, é verdade. Mas não o suficiente para derrotar o principal motor da corrupção: a impunidade. Quando apenas sete de cada cem suspeitos de corrupção vão para a cadeia, fica difícil para um corrupto imaginar que ele poderá ser punido por seus crimes.
O Brasil perde a cada ano 5% do PIB por causa da corrupção, segundo um estudo da FGV
A certeza da punição é o que diminui o crime, e não uma pena mais ou menos dura, diz a cientista política Maria Tereza Sadek, professora da Universidade de São Paulo (USP) e uma das maiores especialistas brasileiras em Justiça. Os comportamentos desviantes são estimulados se as pessoas não têm a certeza de que serão punidas.
O combate à corrupção no Brasil lembra o mito grego de Sísifo. Por ofender os deuses, Sísifo fora condenado a empurrar uma pedra montanha acima. Quando chegava ao topo, a pedra rolava montanha abaixo. Sísifo precisava, então, refazer todo o trabalho. Se a Justiça falha na punição dos corruptos, se é a impunidade que prevalece, o país fica sempre, como Sísifo, empurrando pedras montanhas acima, num esforço inútil.
O primeiro efeito da impunidade é a lassidão moral que se abate sobre a sociedade. Os brasileiros se acostumaram a associar corrupção ao desvio de verbas públicas. Mas ela é mais que isso. Vai do presentinho que a empresa oferece ao funcionário público até a compra de sentenças no Judiciário. É a propina que as quadrilhas pagam aos fiscais para extrair e contrabandear madeira ilegalmente; o suborno do policial de rua que faz vistas grossas à prostituição infantil e ao tráfico de drogas; o ágio pago à auto-escola para tirar a carteira de habilitação sem fazer exame. Longe dos grandes escândalos que ganham os holofotes da mídia, a corrupção se dissemina no varejo anonimamente. Ao incorporar o suborno como inevitável graças à sensação de impunidade , o país incorre numa auto-sabotagem velada. O fiscal que deixa entrar mercadorias pirateadas da China permite a concorrência desleal à indústria brasileira. O funcionário público que desvia um lote de vacinas expõe as pessoas ao risco de morrer. Onde há um servidor público corrupto, o Estado perde eficiência, a população deixa de ser atendida como merece e o crime se fortalece.
Tudo isso tem um custo econômico. O Brasil perde, a cada ano, o equivalente a 5% do PIB, ou R$ 130 bilhões, por causa da corrupção, segundo cálculos do economista Marcos Fernandes, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo. O custo da corrupção não é só o valor do dinheiro drenado do poder público e dos indivíduos, diz Fernandes. O problema grave da impunidade é que ele é sintoma de insegurança jurídica. A segurança jurídica um conjunto de regras claras e estáveis em que todos confiem traz investimentos, crescimento, empregos, inovação e difusão de tecnologia. A corrupção piora os indicadores sociais porque retira dinheiro da segurança, da saúde e da educação, contribui para a manutenção da carga tributária e reduz a competitividade da economia. De acordo com os estudos de Fernandes, o PIB do Brasil poderia crescer até 2 pontos porcentuais a mais todos os anos, se não fosse a corrupção. Por causa da impunidade, a economia brasileira comporta-se como um trem que anda mais devagar do que poderia porque uma de suas rodas está fora dos trilhos.
O que fazer para evitar que o Brasil continue a carregar as pedras da corrupção montanhas acima, apenas para vê-las cair logo em seguida? A experiência de outros países ensina que um dos caminhos mais eficientes para inibir a corrupção é tornar as ações dos governos mais transparentes. A falta de informações é uma aliada dos s corruptos. O segredo, nesse caso, chama-se internet. No Brasil, nos últimos anos, foram desenvolvidos alguns sites que permitem o acompanhamento detalhado de gastos do governo, a conferência de despesas e receitas de campanhas eleitorais e até as declarações de bens de parlamentares eleitos. Os mais conhecidos são o Portal da Transparência, do governo federal, o site do Tribunal Superior Eleitoral e o Projeto Excelências, mantido pela ONG Transparência Brasil. Todos eles contêm informações que, a rigor, são públicas há muitos anos, mas eram inescrutáveis, pois estavam escondidas em cartórios eleitorais ou escaninhos do governo.
Transparência tende a inibir os corruptos. Como os dados podem ser rastreados, fica perigoso roubar
A idéia por trás do uso da internet como ferramenta de combate à corrupção é permitir que cada cidadão seja um fiscal em potencial. É um entendimento cada vez mais comum em democracias desenvolvidas. Os órgãos de controle não têm condições de olhar tudo. Eles trabalham por amostragem ou a partir das denúncias que recebem. Ao dar transparência total às informações públicas, os sites permitem que qualquer um verifique algo que pareça estranho, a quantidade e a qualidade das denúncias aumenta. A corrupção, conseqüentemente, diminui. Há, ainda, um segundo fator positivo na divulgação de dados públicos na internet: a transparência inibe a iniciativa dos corruptos. Como os dados podem ser rastreados, fica cada vez mais arriscado roubar.
Um avanço maior, porém, só será possível com um choque de gestão e da qualidade na atuação do Judiciário e das instituições envolvidas no combate à corrupção. O trabalho desses órgãos, em muitos casos, não costuma ser coordenado. A Controladoria-Geral da União, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e os tribunais de contas têm pouca ligação com a PF e com o Ministério Público. A polícia e o Ministério Público travam disputas agressivas pelo comando das investigações. E os dois têm divergências com a Justiça. Quando esses litígios são superados, bons resultados aparecem.
A importância da boa gestão é a principal lição do exemplo positivo da Polícia Federal. O aumento da produtividade da PF no combate à corrupção é resultado do investimento maciço em recursos humanos, tecnologia e gestão. De 2003, primeiro ano do governo Lula, até hoje, o orçamento da PF cresceu de R$ 1,8 bilhão para R$ 3,5 bilhões por ano. O efetivo aumentou com a contratação de quase 3 mil novos agentes, delegados e peritos. Para atrair profissionais mais qualificados, a remuneração foi melhorada.
O salário inicial dos delegados, antes muito inferior ao dos promotores e ao dos juízes, passou de R$ 8.300, em 2003, para R$ 12.900. Essas melhorias foram acompanhadas de maior autonomia nas investigações. Então comandada pelo delegado Paulo Lacerda, hoje à frente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), a PF aplicou mais de US$ 35 milhões na compra de equipamentos para perícia, grande parte deles importada do exterior. Dois prédios foram construídos para acomodar o Instituto Nacional de Criminalística de Brasília. Foram montados ou ampliados os laboratórios para exames químicos, genéticos, de balística e de análise de imagens e som.
A capacidade de produção de análises e de laudos periciais aumentou 300%, segundo a PF. Com o quadro de funcionários maior e mais bem-preparado, a PF mudou também o método de trabalho de seus agentes. Antes, o esforço era concentrado na investigação e na prisão de suspeitos. Agora, o foco passou a ser desarticular quadrilhas inteiras.
Para desatar o nó da impunidade, a melhoria da gestão tem de ser levada para dentro do Poder Judiciário, segundo reconhecem as próprias associações de magistrados e juízes. Num estudo produzido com o Banco Mundial, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) coloca o aumento da eficiência como o principal desafio para superar a crise na Justiça. Falta aos juízes formação de administrador.
Os concursos de juízes exigem dos candidatos conhecimentos de Direito, mas nada de Administração, diz Rodrigo Collaço, ex-presidente da AMB. Essa cultura bacharelesca, predominante até agora, é uma das causas da impunidade.