O estado não pode quebrar o pacto com a polícia
Edvandir Felix de Paiva, presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF)
O projeto de reforma da Previdência vai na contramão dos países que valorizam suas polícias. O texto entregue ao Congresso ameaça a eficiência das instituições policiais no futuro e elimina importantes mecanismos de reconhecimento dos que estão na linha de frente do combate ao crime organizado e à corrupção.
Fatores como vocação, remuneração, condições de trabalho, orgulho da instituição e reconhecimento do Estado são determinantes para alguém decidir trabalhar e permanecer nas forças de segurança. Nesse quadro, a aposentadoria policial e a pensão para familiares em caso de morte são fundamentais para compensar o ambiente de pressão e estresse contínuos, além do permanente risco de vida. Só em 2016, 437 policiais foram mortos. Estudos mostram que um policial tem 2,16 vezes mais chances de morrer do que quem exerce outras atividades.
Todo policial faz o compromisso de proteger o cidadão com a própria vida se for necessário. Em resposta, o Estado, embora quase sempre não ofereça condições razoáveis de trabalho, oferece aposentadoria sem redução nominal dos rendimentos de quem completar 20 anos de atividade estritamente policial e 30 anos de contribuição previdenciária, algo similar ao que ocorre em vários países.
Esse acordo entre o Estado e os policiais está com os dias contados se a PEC 6/2019 for aprovada da forma como está. O texto aumenta os tempos necessários para aposentação, sem sequer estabelecer regra de transição na idade mínima exigida, para que a frustração de ter que replanejar a vida não seja tão brusca e injusta. Há um impacto muito diferenciado para alguém que firmou um contrato com o Estado, se planejou, em alguns casos até deixou de seguir outros rumos, do que com alguém que ainda não fez suas escolhas profissionais.
O modo como a proposta trata os novos policiais é tão preocupante quanto a quebra de acordo com quem já é policial. A proposta do governo faz com que aqueles que entrarem na polícia após a reforma tenham apenas duas opções ao fim de suas carreiras: se aposentar com uma redução drástica de renda ou trabalhar até os 75 anos (em que a aposentadoria é compulsória), caso não morra antes.
Um dos efeitos inevitáveis da nova realidade será a permanência de policiais na ativa mesmo sem as condições físicas e mentais necessárias para combater o crime. Surgirá uma polícia envelhecida e com condições menores de bem prestar serviços de qualidade à população.
Outro efeito esperado é a evasão e a perda de talentos para o mercado privado. O Estado não conseguirá atrair as melhores cabeças para uma atividade tão especial e sacrificante quanto é a desempenhada pelas carreiras policiais. Teremos, então, uma polícia menos preparada e mais suscetível a erros.
A reforma poderá transformar uma polícia técnica, como é a PF, em um mero trampolim para outras profissões. Ou obrigar os policiais a conciliarem a profissão com outras atividades. Ao invés de atrair os melhores, fomentar a dedicação integral e exclusiva e premiar os sacrifícios dos bons policiais, o Estado planeja oficializar os “bicos” e firmar a polícia como instituição de passagem para outras carreiras.
Com relação às mulheres policiais, a “nova Previdência” é ainda mais preconceituosa. A regra geral diferencia o tempo de idade mínima da mulher em todas as profissões, mas não o faz em relação à mulher policial. Exatamente aquela que tem sua rotina comprometida durante toda a carreira e muitas vezes é obrigada a não somente acumular jornadas, como desempenhá-las a distância, dadas as peculiaridades da profissão. Esse tipo de regra tornará ainda mais masculinas as carreiras de segurança pública.
Outro ponto extremamente cruel para com os policiais é o que trata da pensão para familiares em caso de morte. A PEC elaborada pelo governo federal propõe que o profissional, que corre o risco de ser morto em serviço ou fora dele por causa de sua profissão, deixe menos da metade de seu salário para a família, caso faleça. A pensão integral para quem perde a vida pela sociedade deveria ser não apenas uma política de reconhecimento, mas um compromisso moral para com um herói.
Nem mesmo o aspecto econômico da aposentadoria policial é algo que impeça que o Estado dê o tratamento previdenciário justo. Polícia não é gasto, é investimento. A Polícia Federal é um enorme e bem-sucedido exemplo de retorno de valores ao Estado.
A boa situação fiscal e econômica do país é fundamental para o desenvolvimento. A escassez dos recursos disponíveis torna necessária a escolha de prioridades que, durante a campanha eleitoral, pareciam incluir a segurança pública, a paz social e o combate à corrupção e às facções criminosas. A reforma da Previdência, nos termos em que foi apresentada pelo governo com relação às carreiras policiais, sinaliza que o discurso eleitoral não deve se concretizar. Felizmente, ainda há tempo para se corrigir esse erro.
*Artigo publicado na edição do Correio Braziliense desta quarta-feira (13).