O Indisfarçável Caráter Inquisitivo do Sistema Processual Penal Brasileiro
O Indisfarçável Caráter Inquisitivo do Sistema Processual Penal Brasileiro – Data Venia
*Rui Antônio da Silva[1]
RESUMO
O presente artigo traz à tona o indisfarçável caráter inquisitivo do Sistema Processual Penal Brasileiro, haja vista, sobretudo, o que vem distinguindo a atuação do Ministério Público no atual cenário. Enquanto ainda haveria uma névoa cinzenta sobre as reais funções constitucionais do Ministério Público, este, por alguns de seus membros, com a possível aquiescência de parte do Poder Judiciário, e suposta passividade da Ordem dos Advogados do Brasil, com atuações equivocadas, caracterizadas, em tese, por desvios de finalidade, estaria a comprometer “O Devido Processo Legal”. Desse fenômeno, algumas decorrências práticas: violação do equilíbrio entre as partes no processo penal; insegurança jurídica; inobservância institucional de direitos e garantias fundamentais. Nesta perspectiva é que se propõe a fazer uma breve análise do “dever ser” constitucional e “o ser” na prática cotidiana dos fóruns e dos tribunais.
Palavras-chave: Sistemas Processuais Penais. Caráter inquisitivo. Sistema Persecutório Criminal. Função acusatória. Fóruns e tribunais. Ministério Público.
Ainda há uma distância abismal entre a teoria (do ordenamento jurídico, da doutrina e da jurisprudência), o “dever ser”, e a prática (dos fóruns e dos tribunais), “o ser”.
Na teoria, “todos são iguais perante a lei” e são inocentes, “até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. No Processo Persecutório Criminal[2], de natureza híbrida, com uma primeira fase inquisitiva[3], a investigativa, com menor participação do Judiciário e mais administrativa, e outra, final, predominantemente judicial, há o devido processo legal, há o contraditório e há a ampla defesa.
Também na teoria, o Processo Persecutório Criminal deve buscar a verdade real possível, em relação aos fatos em questão.
A doutrina distingue o Sistema Processual Acusatório como sendo aquele em que as funções de acusar e julgar são conferidas a pessoas distintas, atuando o julgador com total imparcialidade. Dadas às características do Processo Persecutório Criminal adotado entre nós, levando-se em conta os seus atores formais e os direitos e as garantias constitucionais, afigura-se inarredável separar, nesse processo, três funções fundamentais, a de investigar, a de acusar e a de julgar.
No outro extremo, há o Sistema Inquisitivo, no qual as funções de investigar, acusar e julgar recaem sobre a mesma pessoa.
Por trás de tudo isto, há um bem de valor inestimável, chamado segurança jurídica[4], em favor da qual se justifica a tripartição das funções na persecução criminal, e a prática brasileira, notadamente nos últimos tempos, corrobora este entendimento.
Este é o dever ser, em tese. A prática, contudo, não é a lei e nem o discurso, é o dia a dia, é o real, é o que de fato acontece. Na teoria, em tese, as funções de investigar e acusar poderiam se permitir, em regra, tanto a quem investiga quanto a quem acusa, como funções precípuas. Neste modelo, tanto a Polícia Investigativa poderia também acusar quanto o Ministério Público poderia também investigar. Se a ideia de quanto mais, melhor, pudesse ser aplicada, isto seria o ideal. Leigamente, seria isto, mas, a questão vai além, ela é eminentemente técnico-científica.
Seria de todo incompreensível um Processo Persecutório Criminal em que o policial que investiga, acometido pelas paixões da atividade, também pudesse exercer a função acusatória. Ora, é igualmente incompreensível, pelos mesmos motivos, que o acusador investigue. Na essência, os dois casos são exatamente iguais. São funções estatais distintas atribuídas a seres humanos, sujeitos às mesmas vicissitudes. O que muda são as designações dos cargos e das funções, mas, na essência, são idênticos.
Voltando ao famigerado abismo que separa a teoria da prática. O Ministério Público, no processo criminal, como titular da ação penal, é tão parte[5] quanto a que se defende, merecendo ambas, teoricamente, isonômico tratamento do equidistante julgador. Mas…, na realidade, hodiernamente, não é assim, em regra. A parte acusadora está intimamente ligada a quem vai julgar a causa, tomam cafezinhos juntos, falam ao pé de ouvido, entram nas salas um do outro sem precisar pedir licença, convivem diariamente, são confidentes e, no mínimo, diríamos, são “quase” amigos. Até a disposição dos atores na sala de audiências já informa algo neste sentido, é “imperial”, incompatível para o século XXI. Neste contexto, a defesa fica bem longe, não tem a mesma intimidade, esperas infindáveis, pouca ou nenhuma boa vontade, mal lhe dão ouvidos. É como se estivesse em outro nível, um pouco abaixo do que estão os outros dois atores “principais”.
O Processo Persecutório Criminal Brasileiro, para arrepio da segurança jurídica e dos eminentes juristas que cunharam a Carta Magna de 1988, caminha a passos largos para um sistema cada vez mais inquisitivo, inseguro e injusto.
Diga-se, de passagem, o Ministério Público, titular da ação penal, que deveria ser “promotor de justiça” e guardião do direito e da ordem, tornou-se um mero acusador que se “diverte” com a deslumbrante função investigativa, apaixonado perdidamente pelos holofotes. Desta forma, ressalvadas as exceções, aparentemente descompromissado com a segurança jurídica dos cidadãos, o Ministério Público, em tese, investiga, denuncia e tem a sua pretensão julgada por aquele com quem mantém a estreita proximidade dita alhures. Isto é processo inquisitivo. Na essência, a mesma pessoa investiga, acusa e julga.
Em primeira instância, esta é a predominância dos nossos processos criminais, sobretudo os midiáticos, quiçá atingindo um pouco também os tribunais de recursos. É a dura realidade, um golpe na cidadania e na dignidade humana.
Que venha logo o tempo em que, no Processo Persecutório Criminal Brasileiro, a ordem seja resgatada, que o “promotor”, seja de justiça; que as partes estejam de fato equidistantes do julgador; que a inocência, seja acatada; que a segurança jurídica seja praticada e que a justiça, tempestivamente, seja realizada.
[1] (*) Advogado; mestre em Direito, Estado e Cidadania; Delegado de Polícia Federal aposentado.
[2] O Processo Persecutório Criminal inicia-se com a instauração formal da investigação criminal, em regra pelo inquérito policial, a cargo da Polícia Judiciária, sob a presidência da Autoridade Policial, o Delegado de Polícia, e se conclui com o trânsito em julgado da decisão judicial que vier a ser proferida em seu bojo.
[3] Na fase investigativa do Processo Persecutório Criminal o contraditório e a ampla defesa ocorrem apenas de forma mitigada, não ainda com o rigor e amplitude que devem ser observados na segunda fase desse processo, a judicial, conduzida por um magistrado.
[4] A segurança jurídica existe para que a justiça, finalidade maior do Direito, que é o seu instrumento de realização, se concretize. É dizer, a segurança jurídica concede às pessoas a garantia necessária para o desenvolvimento de suas relações sociais, quer entre os particulares, quer entre estes e o Estado, dando-lhe a certeza de seus desdobramentos normais e justos.
[5] Embora seja parte no processo penal, o Ministério Público não poderia olvidar de sua essência, que é a de promover a justiça e funcionar efetivamente como fiscal da lei. É parte o Ministério Público, mas não uma parte comum, como a outra. A ele não é lícito abandonar a necessária isenção em seus atos, assim como, na busca da possível verdade real, não lhe é dada a prerrogativa de sacrificar direitos e garantias fundamentais de acusados, contra os quais, sem lastros probatórios, mas, para satisfazer o ego, em razão de conclusões precipitadas, mantêm presos injustamente, numa cadeia sucessiva de arbitrariedades.