Os donos das investigações criminais no Brasil

4 de fevereiro de 2014 18:29

Uma das maiores bandeiras levantadas pelos manifestantes que tomaram as ruas do País este ano foi contra a Proposta de Emenda Constitucional nº 37/2011, que pretendia tornar as investigações criminais monopólio das polícias. No dia 25 de junho,a proposta foi rejeitada pelo plenário da Câmara dos Deputados por 430 votos contrários e nove favoráveis. Seus apoiadores a denominaram "PEC da Legalidade" por entenderem que ela só retomava o texto da Constituição de 1988. Seus opositores, por sua vez, a intitularam de "PEC da Impunidade", entendendo tratar-sede uma retaliação ao trabalho do Ministério Público no combate à corrupção.

 

O projeto é de autoria do deputado federal Lourival Mendes (PT do B/MA), que é delegado de polícia. Além dos delegados, a PEC tinha o apoio do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e em seu favor juristas consagrados emitiram pareceres, como Ives Gandra Martins, José Afonso da Silva e Régis Fernandes de Oliveira. Por outro lado, foi muito criticada pelo povo e por todo o Ministério Público, que lançou campanhas, a principal chamada de “Brasil contra a Impunidade”.

 

Origem do problema

 

A discussão trazida pela PEC 37 sobre o poder investigatório do Ministério Público inicia-se pela interpretação do texto constitucional atual. Isso porque a Constituição não definiu de maneira explícita se a investigação é exclusividade da polícia nem se pode ser feita pelo Ministério Público.

 

Segundo o promotor de Justiça César Bechara Nader Mattar Jr., presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP), “a Constituição da República é farta, notadamente ao consagrar o Ministério Público com poder de diligência, de requisições, como destinatário das provas, e com o dever de bem acusar. De toda sorte, a qualquer cidadão, por meios lícitos, é dado o direito – e o dever – de investigar e fornecer elementos à persecução penal”.

 

O jurista José Afonso da Silva, em parecer concedido ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), discorda: “percorram-se os incisos em que o artigo 129 define as funções institucionais do Ministério Público e lá não se encontra nada que autorize os membros da instituição a proceder a investigação criminal diretamente”. O constitucionalista, professor titular aposentado da Universidade de São Paulo (USP), ainda testemunhou sobre sua participação na Assembleia Constituinte de 1987, contando que “o que havia sobre isso foi rejeitado. Argumenta-se que a Constituição não deferiu à Polícia Judiciária o monopólio da investigação criminal. É verdade, mas as exceções estão expressas na própria Constituição e nenhuma delas contempla o Ministério Público”.

 

Na justificação da PEC é apresentado como um dos seus motivosa falta de regras claras definindo a atuação dos órgãos, o queestaria causando problemas, como procedimentos informais de investigação conduzidos pelo Ministério Público sem forma, controle, nem prazo, o que faz com que posteriormente sejam questionados junto aos tribunais superiores.

 

O delegado de Polícia Federal João Thiago Oliveira Pinho, membro da Diretoria Executiva da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), explica que o Ministério Público tem importante papel previsto constitucionalmente de combate à corrupçãonas áreas administrativa e cível, por meio de ações de improbidade, ações civis públicas e inquérito civil. Na fase criminal, porém, a investigação é feita pelas Polícias Judiciárias com o auxílio do órgão, que atua como fiscal da lei e pode pedir diligências adicionais ao final. Quando o delegado encerra as investigações, o Ministério Público recebe o inquérito policial e utiliza as provas contidas nele para oferecer a denúncia. “A única coisa que a PEC proibiria seriam as investigações feitas diretamente pelo Ministério Público, as quais são muito problemáticas. Hoje, o Ministério Público faz investigações sem controle algum por meio de seus Procedimentos Investigatórios Criminais (PICs). Isso dá espaço para arbitrariedades, perseguições e outros abusos, a maioria dos quais nunca chegaremos a saber se ocorreu porque não há mecanismos de controle externo sobre essa investigação”.

 

Segundo o delegado, o papel do Ministério Público é ter uma atuação impecável em juízo, garantindo que as provas colhidas durante o inquérito sejam aceitas pela Justiça. Ele critica o órgão que, diz, parece ter se interessado mais em fazer outras coisas do que em realmente aquilo que é de sua atribuição, e tem atuado de forma fraca perante os tribunais e acabam perdendo diversas ações criminais.Nesse sentido, entende que “a maior causa da impunidade no País é justamente a fraca atuação do Ministério Público como acusador na fase judicial. Por isso, vários processos penais acabam prescrevendo, sendo anulados ou absolvendo o réu, ainda que haja elementos de prova no inquérito”.

 

Corporativismo

 

“É incrível como interesses institucionais tornam questões jurídicas simples em temas tão complicados”. A observação é do professor titular de Direito Financeiro da USP, Régis Fernandes de Oliveira, em artigo publicado no site da Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP).O professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Gianpaolo Smanio, concorda: “penso que os motivos [da propositura da PEC] são corporativos e a solução passa pela atuação conjunta entre as instituições que realizam investigações, principalmente o Ministério Público e a Polícia, bem como pelo fortalecimento de ambas as instituições”.

 

Na justificação da PEC também foi mencionado como um dos motivos para a proposta a suposta falta de conhecimentos técnico-científicos para investigação por parte dos integrantes do Ministério Público. Em resposta a quem duvida da capacidade da instituição, o Procurador do Trabalho Carlos Eduardo de Azevedo Lima, presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), exemplifica dizendoser“corriqueiro realizarmos operações para apurar graves irregularidades como o trabalho infantil, aí incluída a exploração sexual de crianças e adolescentes, trabalho escravo, fraudes trabalhistas das mais diversas, entre inúmeras outras. E tudo isso se insere, inquestionavelmente, nas atribuições finalísticas dos Procuradores do Trabalho, que não se limitam a aguardar relatórios produzidos pela Fiscalização do Trabalho. Esta, reconheça-se, constitui uma imprescindível parceira. Mas nossa atuação, além das parcerias com outros órgãos e instituições, dá-se, também, por meio da realização das diligências fiscalizatórias diretamente, sem que haja qualquer irregularidade nisso”.

 

Com relação à capacidade do Ministério Público de cumprir a função investigatória adequadamente, o risco do órgão se corromper, por ter maior contato com o crime ao investigá-lo, foi questão levantada pelo jurista José Afonso da Silva: “Uma das características do crime organizado está no envolvimento de autoridades públicas como um dos modos de sua ação e de sua impunidade. Não falta quem diga que o fato de a polícia estar na linha de frente da investigação criminal contribui para a contaminação de alguns de seus elementos, e não é garantido que, se o Ministério Público assumisse tal condição, ficaria imune aos mesmos riscos. O Ministério Público no Brasil é hoje uma instituição da mais alta consideração pública por sua atuação ética e sua eficiência, que é preciso conservar e defender”.

 

Os representantes do órgão reconhecem o risco, mas o afastam. O Promotor de Justiça César Mattar Jr. lembra que “o Ministério Público é, hoje, a mais fiscalizada entre as instituições com atribuição investigatória. É controlado internamente pelas Corregedorias e pelas Ouvidorias e, externamente, pela Corregedoria Nacional e pelo Conselho Nacional do Ministério Público, organismo de status constitucional, composto também por representantes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Qual outra instituição conta com tais mecanismos de controle?”.

 

O delegado João Thiago Oliveira Pinho vê a questão de modo diverso. Ele considera que o inquérito policial “se submete a sete tipos de controles realizados por diversos atores internos e externos – como o Ministério Público, a Justiça, a Corregedoria da Polícia, a Ordem dos Advogados do Brasil, a sociedade e o próprio investigado – enquanto que as investigações do Ministério Público não têm nenhum controle desses. O único controle possível seria o judicial, se essa investigação efetivamente virar uma ação penal”.

 

Sistema acusatório

 

Mas qual o problema em se permitir que o Ministério Público investigue os crimes? Não é melhor para toda a sociedade se os crimes forem mais investigados, por mais instituições? Não é o que entendem os delegados e aqueles que defendem os acusados (nem sempre condenados ou culpados) nas ações penais.

 

A maior parte da doutrina jurídica nacional entende que o ordenamento jurídico atual, principalmente após a Constituição Cidadã de 1988, adotou o sistema de persecução criminal acusatório, segundo o qual as funções acusatórias e julgadoras não cabem ao mesmo cargo. Pelo contrário, o processo é composto por três sujeitos com funções distintas: de julgar, acusar e defender, estas duas últimas em pé de igualdade.Tal sistema difere de como era no passado, quando vigente o sistema inquisitivo, em que o juiz também era responsável pela acusação – prejudicando a defesa.

 

Segundo o defensor público Dinarte da Páscoa Freitas, presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF), “a partir do instante que temos nas mãos de um mesmo ente a função investigatória e acusatória, sendo esse ente parte do processo criminal, fragilizamos a busca da verdade nos feitos criminais e as conquistas de direitos humanos como a ampla defesa e o contraditório”.

 

Segundo o Procurador-Geral de Justiça de Roraima e vice-presidente da Região Norte do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais (CNPG), Fabio Bastos Stica, nada disso acontece, pois o membro do Ministério Público tem a obrigação de ser “parte imparcial”, tanto é que lhe compete, mesmo quando realiza as investigações, pedir a condenação ou a absolvição do investigado. “O membro do Ministério Público não é uma máquina de acusação, a própria designação do cargo já esclarece sua função: a ele compete promover a Justiça e, para tanto, deve sempre buscar a imparcialidade, pois a ele também está acometida a função de fiscal da lei.”

 

O Procurador de Justiça Felipe Locke Cavalcanti, presidente da Associação Paulista do Ministério Público (APMP), acha que nessa discussão tem sido feitauma confusão entre ampla defesa e investigação. “A ampla defesa tem que existir em processo judicial, não inquérito policial, que não é processo. Por sinal, é consagrado que o Ministério Público pode ofertar acusação com qualquer tipo de prova, independentemente de inquérito.” Para melhor explicar sua versão, exemplifica: “em uma ação de despejo, que é cível, se a parte constituiu prova não pode entrar com ação? Os advogados podem produzir provas antes de entrar com a ação, porque o Ministério Público não poderia? Esse raciocínio segundo o qual delegado investiga, promotor acusa e advogado defende é demasiado simplista, já que tais situações não são estanques. O delegado investiga para o promotor. Além disso, a prova é sempre imparcial, o único que não pode produzi-la é o juiz, que é inerte”.

 

Exatamente com base na função acusatória do Ministério Público alguns defensores de seus poderes investigatórios acreditam na aplicação, ao tema, da “teoria dos poderes implícitos”. Segundo essa teoria, por uma questão de lógica, se a Constituição assegura ao órgão ministerial a competência privativa para promover a ação penal pública, como o faz expressamente, deve ter-lhe também assegurado os meios para alcançar esse fim, sob pena de sua completa ineficácia. Levando o raciocínio adiante, retruca o ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Luiz Flávio D’Urso, em artigo sobre o tema: “se o juiz pode decidir e até condenar, não poderia ele investigar e promover a ação penal?”. E responde em seguida: “não, porque as atribuições de cada um são muito claras, precisas e a lei as estabelece de maneira a haver a complementação das atividades, além do controle da própria atividade estatal”.

 

O jurista José Afonso da Silva esclarece que “o fim (finalidade, objetivo) da investigação penal não é a ação penal, mas a apuração da autoria do delito, de suas causas, de suas circunstâncias”. E complementa: “poderes implícitos só existem no silêncio da Constituição, ou seja, quando ela não tenha conferido os meios expressamente em favor do titular ou em favor de outra autoridade, órgão ou instituição. Se ela outorgou expressamente a quem quer que seja o que se tem como meio para atingir o fim previsto, não há falar em poderes implícitos. Como falar em poder implícito onde ele foi explicitado, expressamente estabelecido, ainda que em favor de outra instituição?”.

 

Critérios para a atuação do Ministério Público

 

Admitida a possibilidade de investigação do Ministério Público, como na prática se deu com a rejeição da PEC 37, surge a dúvida sobre quais crimes o órgão poderá investigar.Os favoráveis à PEC criticam uma suposta atuação do órgão que selecionaria crimes de maior destaque, amplamente divulgados pela mídia e capazes de projetar a instituição.

 

Segundo o promotor de Justiça César Bechara Nader Mattar Jr.,existem delitos que,“envolvendo entes e entidades integrantes da administração pública, fogem ao alcance da estrutura policial. Esse, primordialmente, deve ser o viés do trabalho ministerial, sem negar a imprescindível parceria com os órgãos policiais”.

 

O Procurador de Justiça Felipe Locke Cavalcanticoncorda. Para ele a atuação investigatória do MP seria pontual em casos em que a polícia “não funciona bem, como em alguns de corrupção e crime organizado, nos quais, infelizmente, muitas vezes os agentes conseguem cooptar membros da administração pública, e é difícil a corporação investigar o que acontece com ela própria”. Nesse sentido ele lembra que o Ministério Público tem obrigação constitucional de fazer com que a polícia funcione e, “por isso, precisa saber se a polícia investiga bem. Para tanto, deve investigar o que a polícia fez”.

 

O Procurador-Geral de Justiça Fabio Bastos Stica conta que tramitam no Congresso Nacional projetos de lei (como o PLnº 5.776/2013) que visam regulamentar o poder/dever investigatório do Ministério Público brasileiro – “e a maior interessada nesta regulamentação é a própria instituição, que verá respaldada pela lei a forma de cobrança aos seus integrantes”.