Os segredos da investigação no BNDES

5 de maio de 2008 10:53

Nos próximos dias, o Supremo Tribunal Federal (STF) terá que se manifestar sobre uma investigação que desde dezembro vem sendo conduzida pela Polícia Federal. Trata-se da Operação Santa Teresa, que visava inicialmente apurar crime de prostituição e tráfico de mulheres para o Exterior e acabou descobrindo a existência de uma “organização criminosa” que, em troca de milionárias propinas, liberava recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para prefeituras e empresas privadas. ISTOÉ teve acesso com exclusividade a dois relatórios do setor de inteligência da PF.

Nesses documentos estão registradas, em 48 páginas, conversas telefônicas de 17 pessoas, gravadas em 38 aparelhos fixos e celulares durante 45 dias. O conteúdo desses diálogos macula a imagem do maior banco de fomento da América Latina, maior indutor do PAC e tido até os últimos dias como um símbolo de eficiência e de rigor técnico na aplicação de seus recursos.

Segundo o organograma elaborado pela PF, chamado de “Esquema BNDES”, o chefe da organização criminosa é Manuel Fernandes de Bastos Filho, conhecido como Maneco. Ele é o dono da Fernandes Bastos Construtora e Incorporadora Ltda. e da Casa Noturna WE, origem da investigação. Abaixo dele está João Pedro de Moura, um dos principais assessores da Força Sindical, que já assessorou o deputado Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), presidente da entidade, e que por indicação da central sindical ocupou um assento no Conselho de Administração do BNDES. De acordo com a PF, Moura exercia o papel de elo entre o grupo e o banco. Nos relatos gravados, fica evidente como o grupo atuou para a liberação de pelo menos R$ 396 milhões, sendo R$ 126 milhões para obras de urbanização e saneamento em Praia Grande, litoral sul de São Paulo, e R$ 270 milhões para as Lojas Marisa.
Nos relatórios, os agentes da PF revelam que a casa noturna de Manuel, freqüentada por garotas que chegam a receber até R$ 600 por programa, era usada como base de encontros dos envolvidos com as fraudes no BNDES e para fazer “relações públicas”.

Os policiais dizem ainda que “as garotas recebiam semanalmente, e não diretamente por programa”, e asseguram que a maior parte delas morava num flat anexo à casa e pagava o aluguel do próprio bolso. Entre as conversas gravadas, uma das garotas revela que está “arregimentando 20 mulheres para trabalhar na Suíça e que o embarque seria na primeira semana de janeiro”. Era prometido às garotas um pagamento de 20 mil euros para que ficassem no Exterior por pelo menos três meses.

Nos telefonemas gravados, os negócios da prostituição se misturavam ao desvio de dinheiro público. São conversas que expõem casos de tráfico de influência e desnudam um corriqueiro uso de notas fiscais frias para justificar os pagamentos liberados pelo BNDES. No caso da Praia Grande, até a semana passada, R$ 40 milhões já tinham sido liberados. Na terça-feira 29, porém, depois que o esquema se tornou público, o BNDES comunicou a suspensão do financiamento. Em entrevista coletiva, o presidente do Banco, Luciano Coutinho, disse que se tratava de uma medida preventiva e que não acreditava na possibilidade de fraude. Avisou que o BNDES, que no ano passado investiu R$ 70 bilhões, não trabalha com intermediários e que tudo é fiscalizado com rigor absoluto. “Senhores empresários, tratem diretamente com o Banco”, disse ele.

A investigação da PF desmonta as assertivas do presidente do banco e revela que há, sim, falhas nos sistemas de fiscalização. Na página 7 do relatório confidencial 004/2008, a PF informa que na sexta-feira, 14 de dezembro do ano passado, às 20h34, Moura telefonou para Manuel e lhe passou a informação privilegiada de que uma equipe técnica do BNDES iria a Praia Grande para verificar notas fiscais e obras. Diz, ainda, que o pagamento iria sair entre quarta e quinta- feira da semana seguinte. Na mesma conversa, Moura revela estar preocupado porque recebera a informação de que o prefeito de Praia Grande, Alberto Mourão (PSDB), pretendia ir à sede do BNDES no Rio de Janeiro. “Avisei para ele não ir porque lá o cara é ligado ao José Dirceu e vai querer morder uma grana. Não precisa disso porque os caras que vão fazer a vistoria em Praia Grande são os caras que vão liberar o dinheiro”, disse Moura ao chefe Manuel, demonstrando saber detalhes do que se passa no interior do BNDES.

Quatro dias depois, em conversa com Marcos Vieira Mantovani – empresário, sócio da Progus Investimentos Consultoria e Assessoria Ltda., uma das empresas que, segundo a PF, forneciam notas fiscais frias para o grupo -, Manuel informou que a auditoria estava terminada e programou pagamentos da seguinte maneira: “R$ 20 milhões na sexta ou na próxima segunda, nos primeiros dias de fevereiro mais R$ 10 milhões, em 31 de março mais R$ 16 milhões, 30 de junho R$ 16 milhões, mais R$ 16 milhões por trimestre e o restante em 2009.”

Às 18h25 da terça-feira 22 de janeiro deste ano, Manuel telefonou para José Carlos Guerreiro – sócio da Thermaq Terraplanagem, empresa que, segundo a PF, também emitiu notas frias para a Prefeitura de Praia Grande – e disse: “Vocês não acreditaram que iria sair verba do BNDES, mas, se trabalhar direitinho, esse ano vem R$ 100 milhões e fica ainda faltando R$ 30 milhões.” Na mesma conversa, Manuel informou que para as Lojas Marisa tirou do banco R$ 270 milhões. Em todos os diálogos interceptados com autorização judicial, Manuel buscou encontrar formas de conseguir notas fiscais frias pagando menos impostos. Ele sempre afirma que as notas emitidas por Mantovani e José Carlos estão caras demais. “Havia uma rede de intrigas entre eles. Um sempre tentava passar a perna no outro”, diz um dos delegados que participaram da investigação. Agora, a PF trabalha para identificar uma pessoa tratada pelo grupo como HNI. Isso porque os policiais suspeitam que seja essa pessoa a responsável por fornecer novas notas frias. Em 22 de janeiro deste ano, Manuel telefonou para HNI e disse que tinha um negócio para ganhar dinheiro. “É aquele lance do BNDES. A primeira nota já foi emitida e eu arrumei 500, mas esta foi feijão com arroz. Tem que fazer um negócio a menor, o que você consegue?”. HNI respondeu dizendo que iria avaliar o problema.

Para que possam ter continuidade, as investigações da Polícia Federal sobre o “Esquema BNDES” precisam ter o aval do STF porque esbarraram em dois deputados federais. O primeiro foi Paulo Pereira da Silva (PDT-SP), o Paulinho, presidente da Força Sindical. Segundo os documentos, em 23 de janeiro de 2008, às 14h46, Manuel telefonou para Boris Timoner – consultor das Lojas Marisa e também apontado como membro do esquema, que, além de trabalhar para fraudar os financiamentos do BNDES, agenciava garotas para a casa noturna de Manuel -, e detalhou os acertos finais relativos ao repasse de verbas para Praia Grande. Disse que o grupo ficaria com R$ 2,6 milhões, cada vez que fossem liberados R$ 20 milhões. Explicou que metade desse dinheiro (R$ 1,3 milhão) precisava ir para Mantovani, “porque ele assumiu o Paulinho, o Tosto e o José Gaspar”. De acordo com a PF, Paulinho é o deputado do PDT paulista, Tosto é o advogado Ricardo Tosto, membro do Conselho de Administração do BNDES indicado pela Força Sindical, e José Gaspar é o vice-presidente do PDT em São Paulo. Reforça a tese da polícia um telefonema dado em 11 de fevereiro, às 17h52. Nessa gravação, Mantovani informou a Moura que já tinha recebido sua parte da propina referente ao esquema da Praia Grande e que “separou a parte de RT e de PA”. Segundo a PF, trata-se de Ricardo Tosto e de Paulinho.

O outro deputado citado pela PF é o líder do PMDB na Câmara, Henrique Eduardo Alves (RN). A polícia tem um vídeo que mostra Moura entrando no gabinete de Alves na Câmara, portando uma mochila. “Isso beira o ridículo. Quantas pessoas passam na liderança e no gabinete. Não tenho nada com isso”, disse Alves. Paulinho também negou qualquer participação no esquema. “Não vou falar sobre o que eu não sei”, afirmou.

A divulgação da investigação causou revolta no Parlamento e foi censurada inclusive pelo presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), que acusou a PF de “fazer arapongagem” nas dependências do Legislativo e cobrou explicações do Ministério da Justiça. Na terça-feira 29, o líder do PMDB manteve um áspero diálogo com o ministro Tarso Genro:

– Ministro, que diabo é isso, que maluquice é essa?, questionou o deputado.

– Você não é investigado nesse inquérito, respondeu Genro.

– Mas como, ministro? Eu estou na primeira página do jornal, reclamou o deputado.

– Pois é, isso vazou, mostra a fragilidade do inquérito. Eu te autorizo a dizer que você não está sendo investigado, disse Genro.

– Está bom, ministro, mas quem tem que dizer isso é o senhor, retrucou o deputado.

Publicamente, o ministro se viu obrigado a dizer que também o deputado Paulinho da Força não está sob investigação. Não poderia ter dito outra coisa. Realmente, a PF ignorou o fato de que os parlamentares têm fórum privilegiado e que, para serem investigados é preciso haver autorização do STF. Na semana passada, o ministro determinou o afastamento do superintendente da Polícia Federal em São Paulo, delegado Jáber Saad, tio de um dos responsáveis pela Operação Santa Teresa. Mas, enquanto aguarda um parecer do STF, a Polícia Federal trata de investigar as relações dos demais envolvidos principalmente com Paulinho e com o PDT. Todos os já citados participam do esquema no BNDES a partir da Força Sindical, dominada pelo PDT. Pelo menos dois dos envolvidos são diretamente ligados ao deputado Paulinho: Moura é seu ex-assessor e Tosto é seu advogado e um dos financiadores das campanhas políticas do PDT, inclusive no Rio de Janeiro. “Temos a informação de que parte do dinheiro desviado dos financiamentos do BNDES seria usada para montar a Força Sindical no Rio”, diz um dos agentes que trabalham na investigação.

Uma parcela da comunidade jurídica, em particular a secção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, também se posicionou contra a Polícia Federal. Nesse caso, eles acusam a PF de abuso de autoridade ao colocar na cadeia o advogado Tosto, preso na quinta-feira 24, com outros nove acusados de pertencerem ao esquema. Tosto deixou a carceragem da PF no sábado e na segunda-feira 28 entregou uma carta renunciando temporariamente ao posto de conselheiro do banco. Alega que as operações suspeitas foram feitas em período anterior à sua nomeação e que o Conselho de Administração não tem poder deliberativo. Mas, segundo a PF, os conselheiros do BNDES têm o poder de pedir vistas aos projetos, o que pode emperrar a aprovação dos financiamentos. Quando o STF se manifestar, novas investigações deverão ocorrer e tanto Paulinho como Alves terão que explicar suas relações com Manuel e principalmente com Moura. Como Paulinho, Moura também é réu em um processo, acusado de estelionato, falsidade ideológica e falsificação de documentos usados na compra de uma fazenda no interior de São Paulo para a Força Sindical, o que acarretou prejuízo de quase R$ 3 milhões para o Ministério da Reforma Agrária. Nesse processo, o advogado deles é Ricardo Tosto.