Prisão é coisa séria?: a falácia (militarizada) do ciclo completo de polícia
INTRODUÇÃO
Em tempos em que o recrudescimento da violência bate em nossas portas, é natural que surjam as mais variadas ideias como possíveis respostas no controle da criminalidade. Vivemos em certa inquietude social que requer uma imediata interferência do Estado por meio de políticas públicas na área de segurança, apresentadas de forma séria, legal e responsável. São esses atributos que constroem uma verdadeira política criminal.
No avesso da razão, do bom senso e da própria democratização histórica das instituições policiais, surge no Brasil a proposta da implementação do denominado “ciclo completo de polícia”. Sugerido, principalmente, por meio da Proposta de Emenda Constitucional n. 431/2009, de autoria do Deputado Subtenente Gonzaga, o presente projeto ganha fama, porque ludibriosamente imputa ao cidadão a ideia de um controle policial mais eficaz e célere. Em resumo, o ciclo completo proporcionaria o poder de prisão (por meio da lavratura do Auto de Prisão em Flagrante e Termos Circunstanciados) a toda e qualquer espécie de instituição policial, não importando sua natureza e atribuições. A ideia advém como uma promessa inexequível de uma melhor e mais rápida diminuição da criminalidade. O ciclo completo, ainda que sua reprovação seja histórica, (conforme, por exemplo, a crítica proposta pelo editorial do IBCRIM em junho de 2009[3]) insiste em se apresentar como fórmula mágica de atuação legislativa eficiente e, o pior, sua atual discussão fecha o debate e esconde o campo da política para aquilo que realmente importa em matéria de inovação policial brasileira, ou seja, a desmilitarização. Cabe lembrar que a PEC 430/90, a qual igualmente prevê a adoção do ciclo completo, também defende a desmilitarização das forças policiais como uma das providências iniciais para a adoção do ciclo completo. [4]
É uma proposta que vai ao encontro de uma especial esquizofrenia social à semelhança daquilo que Débora Pastana chamou de “cultura do medo”[5], ou seja, um sentimento de insegurança popular, em que a sociedade clama por um dever-agir imediato, valorado pelos discursos justiceiros e comuns. São achismos desprovidos de qualquer cientificidade que podem produzir, conforme denunciado por Fernando Galvão, uma influência nociva na política criminal brasileira. [6]
A sociedade de risco[7], a cultura do medo, e outros fenômenos congêneres constrói o espaço ideal para uma produção desenfreada de atos governamentais (a maioria deles na esfera do legislativo) sobre o tema segurança pública. É aquilo que chamamos de “legislação de atropelo” [8], ou seja, propostas legislativas desamparadas de qualquer cientificismo, que em nada acrescentam à possibilidade de eficácia concreta na questão de segurança, e apenas repetem fórmulas de insucesso (algumas preconceituosas e opressoras, diga-se), que têm como destinatários uma parte da população já discriminada social e economicamente.
Várias espécies destas políticas estão interessadas tão somente em apaziguar por momentos o sentimento de insegurança da população e, por fim, reforçar a criminalização dos indivíduos considerados indesejáveis. A adoção destes discursos nos mostra que grande parte dessas atividades governamentais é eivada de inúmeros vícios. A não-fundamentação de sua existência, o despreparo e a incompetência das instituições envolvidas, a imprevisibilidade de seus resultados e a sua desconexão quanto à realidade do crime e dos fenômenos sociais são algumas de suas características. Sem falar que estas atividades governamentais apresentam também, em sua quase totalidade, uma existência temporária e uma enorme influência sofrida por atos meramente politiqueiros e classistas de inúmeros aproveitadores.
A ideia desarrazoada da adoção do ciclo completo de polícia é fruto da ansiedade por respostas céleres ao fenômeno da criminalidade – campo fértil para políticas eleitoreiras e incoerentes com a desenvoltura da violência e o descontrole da criminalidade. Políticas populistas que iludem o cidadão quanto à eficácia do remédio amargo ministrado, como se este fosse curar todas as doenças existentes ou, no caso, todas as mazelas sociais.
O denominado ciclo completo de polícia é um factoide político-classista travestido de importância social, e uma vez implementado, representaria o maior retrocesso em matéria de persecução penal em nossa história moderna. A lavratura de Autos de Prisão em Flagrante e Termos Circunstanciados é um anseio originário principalmente pelas Polícias Militares estaduais que visam um maior reconhecimento de seu capital social, político e consequentemente econômico (Bourdieu)[9], nem que para isso utilizem a bandeira de uma melhor e mais eficaz política de segurança pública.
Sobre a conceptualização trazida nesse artigo, ainda que se reconheça a existência de inúmeros argumentos científicos, sociais e jurídicos contra a adoção do ciclo completo de polícia, procuramos limitar nossa análise crítica sobre dois enfoques que elegemos como elementares: o primeiro deles demonstrando a desarrazoabilidade em atribuir a prática do ciclo completo às polícias preventivas. O segundo enfoque, reconhecendo o militarismo como uma polícia imperfeita, demonstrando a real incompatibilidade da adoção do ciclo completo com o fenômeno da militarização policial.
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