Prisma 73: Crimes financeiros e combate à corrupção
Palco das Operações Vegas e Monte Carlos, da Polícia Federal, Goiânia foi sede do Seminário sobre Crimes Financeiros e Combate à Corrupção, realizado pela Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF), com a Diretoria Regional de Goiás, em março. O evento contou a parceria das Organizações Jaime Câmara, com a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e com a Caixa Econômica Federal.
Famoso por mandar prender o banqueiro Daniel Dantas, indiciado na Operação Satiagraha da Polícia Federal, o desembargador federal Fausto Martin de Sanctis (foto acima), proferiu a palestra de abertura. Magistrado há quase 22 anos, De Sanctis afirmou que, ao longo do tempo, aprendeu a admirar a Polícia Federal (PF) pelo trabalho qualificado que vem desenvolvendo, em especial na última década. Para ele, houve uma mudança significativa na forma de atuar e nas prioridades. De acordo com o desembargador, no início só existia apreensão de mercadorias de pessoas que iam ao Paraguai. Os ônibus eram apreendidos e isso era o bastante para as estatísticas da PF e, consequentemente, para os demais órgãos do sistema persecutório federal. Sem menosprezar os crimes como contrabando, descaminho, tráfico de drogas, De Sanctis afirmou que a PF, assim como a Justiça Federal, despertou para o que de fato importa e tem mais impacto ao conjunto da sociedade: o crime organizado, a corrupção e os crimes financeiros.
O desembargador revelou temor quanto às reformas em curso, no Congresso Nacional, do Código Penal e de Processo Penal. Para ele, muito do que está sendo discutido são tentativas de se “criar obstáculos para que as investigações não cheguem às elites dominantes que estão a serviço do crime organizado em todos os Poderes”. Ele acredita que as mudanças que estão por vir vão dificultar as operações da PF, que atingem as elites criminosas.
Com relação aos crimes financeiros, as penas ficaram bem mais brandas, de acordo com o magistrado. Pelo novo projeto, a pena para gestão fraudulenta caiu para até quatro anos de reclusão. Pelos projetos em discussão, não há mais crime de contabilidade paralela, nem de instituição financeira não autorizada. Evasão de divisas passará a ser meramente a saída física de moeda, sendo que é sabido que hoje em dia isso ocorre de forma eletrônica e pela compensação de valores. Se persistir esse conceito, De Sanctis acredita que vai resultar na destruição de tudo o que já foi feito até aqui das investigações da PF. “Todos os doleiros condenados serão agraciados com essa anistia, graça concedida pelo Rei”, afirmou.
Analisando o fenômeno da organização criminosa, De Sanctis identificou ser bastante semelhante aos grupos mafiosos. Os integrantes do crime organizados apresentam valores universais de forma deturpada. “Há o discurso da fé, moral, família e amizade. Onde a fé se transformou em hipocrisia, a moral em vergonha, a família em um clã criminoso e a amizade em cumplicidade”, explicou, enfatizando que a atuação criminosa tem origem e destino no Estado.
De Sanctis traçou ainda o perfil dos criminosos do colarinho branco. São ávidos pela busca de bens materiais, são egocêntricos e compensam sua solidão com “generosidades”. Assim, não é raro se deparar com criminosos que patrocinam causas nobres e serviços sociais junto a comunidades carentes. Inegavelmente também são marcados pela inteligência e reincidência, a qual é proporcionada pelo próprio Estado que não funciona. Por último, o desembargador destacou uma característica bastante curiosa: esses elementos não se consideram criminosos. Aliás, de acordo com o magistrado, toda movimentação que está sendo feita no país é para se tirar o estigma do criminoso econômico. O discurso que se prega é que são “pessoas de bem, não merecedoras de penas restritivas de liberdade, não merecedoras de algemas, pois não oferecem risco à sociedade”.
Para De Sanctis, essa falácia já está sendo enfrentada de outra forma. Internacionalmente, a tendência é punir crime econômico com prisão, para não haver possibilidade do cálculo de custo/benefício. Assim, o desembargador defendeu que a fiança não deve ser aplicada em casos de delitos econômicos, pois esse tipo de punição entra no cálculo dos custos do negócio criminoso.
|LUÍS FLÁVIO ZAMPRONHA. O delegado federal responsável pelo inquérito do Mensalão (foto abaixo), afirmou que a decisão do Supremo Tribunal Federal lavou a alma do povo brasileiro, mas que ainda não é possível vislumbrar se o fato se repetirá. Cético com os resultados, ao contrário de outros palestrantes, Zampronha não viu grandes inovações dogmáticas no julgamento.
Parodiando o ditado popular, o delegado federal disse que “dinheiro sujo não se lava em casa”, assim as organizações criminosas enviam o produto de seus crimes para outros países. Zampronha revelou preocupação com a simplificação das operações de câmbio, o que facilitaria ainda mais a lavagem de dinheiro. De acordo com ele, normas do Banco Central estariam esvaziando a lei de lavagem de dinheiro e que o país precisa enfrentar esse dilema entre modernização das operações de câmbio e a segurança.
Zampronha fez um apanhando sobre a relação entre o Estado e o setor privado no Brasil. Para ele, esse “patrimonialismo estatal” é um dado importante para se compreender a origem da corrupção no país. Ele alertou que, apesar de tudo, é preciso ter cuidado com “discursos totalitários” de que a corrupção seria uma consequência da democracia. Otimista, o delegado não acredita que política seja sinônimo de corrupção.
|RAPHAEL PERISSÉ. No que se refere aos crimes de peculato, que é cometido por servidor público no desvio ou se apropriação de bens públicos, o procurador do Núcleo de Combate à Corrupção afirmou que há dois grandes entraves na aplicação da lei penal. O primeiro é uma questão de eficácia e o segundo é relativo ao padrão probatório exigido. Ele conta que desde 2009 atua diretamente no combate aos crimes de peculato, e não tem nenhum réu condenado cumprindo pena restritiva de liberdade, apenas com prestação de serviços a comunidade, o que invariavelmente não é levado a efeito.
“O réu hoje cumpre pena restritiva de direitos se ele quiser, pois se não quiser não há consequência alguma”, afirmou. De acordo com Perissé, para policiais, delegados e promotores que querem zelar pela correta aplicação da lei, é frustrante se deparar com esse “quadro desalentador de ineficácia na aplicação da sanção penal”.
O procurador disse que hoje em dia quanto mais grave o crime maior é o padrão probatório exigido, beirando ao impossível. Nesse sentido, ele acredita que o julgamento do Mensalão provocou uma “mudança brutal” no que se refere ao padrão probatório para crime de peculato. Ele destacou a fala da ministra do STF Rosa Weber, de que pagamento de propinas não se faz perante holofotes, daí da dificuldade de comprovação, sendo necessário se admitir outras evidências.
|JOSÉ ROBALINHO. O vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) chamou a atenção para a diferença de impunidade e da sensação de impunidade. Para ele, a Ação Penal 470, o Mensalão, foi um ótimo caso, mas que sozinho não vai mudar as estatísticas dos grandes crimes cometidos no Brasil. Ele enfatizou alguns pontos que estão sendo discutidos no Congresso, como a unificação dos tipos de corrupção passiva e corrupção ativa. Ele vê a medida de forma bastante positiva, pois se é muito difícil condenar um funcionário público que recebe propina, ou seja, por corrupção passiva, muito mais difícil é a condenação do corruptor.
Robalinho tratou ainda da questão do enriquecimento ilícito e a possibilidade de condenação penal da pessoa jurídica. Ele lembrou que o Brasil assinou tratados internacionais se comprometendo a reconhecer o tipo penal do enriquecimento ilícito, por isso é preciso avançar.
Para Robalinho a principal inovação do julgamento do Mensalão foi a mudança de cultura, pois enfrentou o “garantismo tupiniquim”. Para ele a exigência da prova concreta foi desmistificada, até mesmo porque não há prova absoluta no processo judicial. Ou seja, o Supremo levou em consideração todo um conjunto de provas indiciárias durante a Ação Penal 470. “O que tem orelha de porco, pé de porco, partes de porco e não é feijoada, é um porco; não precisa fazer um DNA para saber”, comparou para deixar claro que não há que se falar em provas concretas em crimes de corrupção.
|RICARDO SAADI. O delegado federal, chefe do Departamento de Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça, falou que o Brasil já conseguiu bloquear cerca de R$ 3 bilhões no exterior de dinheiro fruto da lavagem de dinheiro e da corrupção. Mas como o dinheiro só pode retornar ao Brasil após o trânsito em julgado das ações, até agora só foram repatriados R$ 20 milhões.
Para Saadi, o combate da organização criminosa deve ser feito por meio de sua descapitalização. “É preciso retirar o combustível das organizações criminosas, com a sua asfixia financeira”, disse destacando a importância de se criminalizar a lavagem de dinheiro, que é uma forma eficiente de se retirar os bens das organizações criminosas.
Ele destacou as inovações da nova lei de lavagem de dinheiro, como o fim do rol de crimes antecedentes; o acesso a dados cadastrais de forma direta pela polícia, sem necessidade de ordem judicial; a alienação antecipada de bens; a regulamentação da delação premiada; o aumento do número de pessoas obrigadas a informar movimentações suspeitas, além do aumento da penalidade administrativa.
Ele enfatizou a que as autoridades policiais precisam aprender a fazer pedidos de cooperação internacional para investigar e bloquear bens das organizações criminosas no exterior. Principalmente, considerando que o dinheiro fruto do ilícito não fica no país. No Ministério da Justiça há, inclusive, um departamento específico – o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional – que centraliza as comunicações e orienta como os delegados devem proceder em cada situação.
|SEBASTIÃO LESSA. O advogado falou sobre as inovações ocorridas com a Ação Penal 470, o Mensalão cujas sessões analisou meticulosamente. Ele destacou um dos principais embates durante o julgamento: a necessidade ou não de se apontar concretamente o ato de ofício do funcionário envolvido em corrupção.
A questão jurídica é que não é suficiente receber um presente para ser corrupto: é preciso que o tal presente tenha sido dado porque o presenteado pode fazer algo em troca no seu cargo, como facilitar uma concorrência ou liberar verbas oficiais para o presenteador. Para o estudioso, o STF posicionou que diante de um crime organizado sofisticado, de maior complexidade, é preciso ter uma elasticidade maior nas provas.
|PAULO LIMA. Encerrando o Seminário sobre Crimes Financeiros e Combate à Corrupção, o juiz federal de Goiás Paulo Augusto Lima falou sobre o problema da prova hoje no sistema brasileiro. Há falhas tanto na produção quanto na valorização pelo Judiciário. Para ele, é preciso superar o vício da prova flagrancial ou testemunhal para condenar alguém. “É muito fácil para um juiz julgar quando tem uma prova flagrante ou uma testemunha ocular”, disse. Mas que essa é uma exigência extremamente simplista. Sempre haverá dúvida e se a pessoa não consegue conviver para isso, não serve para ser juiz. Para Lima, a condenação com base em prova indiciária não foi nenhuma grande inovação do julgamento do Mensalão, pois ela sempre existiu. O magistrado falou sobre a questão do estereótipo do criminoso. Ele disse que é preciso vencer o costume de achar que bandido tem cara de bandido. De outra forma, será bastante difícil julgar alguém que é “igual a você, está a seu lado, frequenta os mesmos restaurantes, mora no mesmo condomínio”.
Na absolvição desse tipo de criminalidade, a retórica e os argumentos são sempre os mesmos: ausência de periculosidade e endereço fixo. O magistrado alerta para a confusão entre periculosidade e violência, sendo que uma coisa não tem nada haver com a outra. Periculosidade é a propensão de cometimento de crimes graves e danosos para a sociedade, não necessariamente violentos. “É muito mais periculoso quem frauda uma licitação do que quem assaltou a padaria”, afirmou.
Quando se trata de um elemento da classe média ou alta, é muito fácil reverter a prisão preventiva, sob o argumento de que “não vai fugir, pois tem endereço fixo”. “Pobre também tem endereço fixo, só que um mora no centro e o outro na periferia; é muito raro bandido não ter endereço fixo, a maioria tem”, ironizou.
Reflexo dessa concepção que dificulta o julgamento daquele que a sociedade não enxerga como criminoso violento, na Polícia Civil quando um ladrão ou estuprador é preso ele fica preso; mas na Polícia Federal é diferente, por causa do público. Segundo o magistrado, isso provoca inclusive o desânimo dos profissionais que se dedicam nas investigações, deflagram operações e uma semana depois veem os presos libertos, rindo do trabalho feito.
O magistrado destacou a importância da produção da prova, sobretudo no âmbito dos inquéritos da Polícia Federal. Em geral se aprende que a prova produzida no inquérito serve apenas para oferecimento da denúncia, devendo ser repetida em juízo, sob o crivo do contraditório. Mas na prática não é isso que ocorre, segundo o magistrado.
Ele chamou a atenção para dispositivo do Código de Processo Penal que excetua a regra para casos que necessitem de prova cautelar, não repetível ou antecipada. “Nos grandes casos da Polícia Federal, aquela prova produzida no inquérito é a que vai ficar em juízo”, afirmou pontuando que crime contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro, tráfico, sigilo bancário, fiscal e telefônico são feitos com base em prova cautelar, não repetível ou antecipada.
Com relação à delação premiada e a infiltração policial, para além da discussão da regulamentação de prazos e limites, o magistrado revelou preocupação com o futuro do policial infiltrado. “Um policial na posição de agente infiltrado também precisa ser premiado e não é com medalha”, afirmou questionando se o servidor poderá mudar de nome, identidade, se ganhará uma aposentadoria premiada para se mudar de endereço e recomeçar a vida, e se receberá alguma premiação por ajudar recuperar milhões.
Para finalizar, o magistrado afirmou que a grande reforma do campo probatório deve ser uma reforma de mentalidade. Nesse sentido, criticou a nomeação da cúpula do Judiciário pelo Poder Executivo, por aqueles que eventualmente podem se tornar réus. Para ele, também não é possível se investigar a macro criminalidade sem garantias e prerrogativas. “O delegado de polícia tem que ter prerrogativa de verdade para mexer com os poderosos; não pode ter seu estatuto funcional ligado à Lei 8.112 e trabalhar morrendo de medo; ele precisa de garantia de verdade”, defendeu.
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