Proibição do uso de máscaras em manifestação: posição favorável
A nossa Constituição Federal de 1988, rompendo um longo e árduo período de Estado ditatorial iniciado com o golpe militar de 1964, inovou em diversos aspectos rumo à consolidação dos direitos e garantias fundamentais. Fez, assim, ressurgir como fundamento da República a dignidade da pessoa humana e todos os seus princípios corolários, externados em seu moderno texto e em sua redação de vanguarda, logrando classificar-se como a “Constituição Cidadã”.
A adjetivação “Cidadã” é empregada em razão da especial atenção que o Poder Constituinte deferiu aos direitos individuais e coletivos, de observância obrigatória tanto pelo Estado quanto pelos indivíduos. Há aqui uma via de mão dupla, em que se envolvem Estado e povo, Administração e administrado, em uma relação de direitos e deveres subjetivos, em prol de um país comprometido com a manutenção de “um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”, consoante se observa no prefácio que precede ao documento constitucional.
O texto do art. 5.º da CF/88, ao tratar dos direitos e deveres individuais e coletivos, no caput apresenta os valores maiores da República, quais sejam os direitos à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Por ora, interessa-nos os pontos que tangem à inviolabilidade dos direitos à liberdade, à segurança e à propriedade. Estes, no contexto dos últimos acontecimentos populares denominados como “vozes das ruas”, dizem respeito propriamente às manifestações que percorreram todo o país e foram amplamente divulgadas pela impressa nacional e estrangeira.
A par da imponência do exercício de direitos constitucionais de forma pouco vista até então, constataram-se, com o mesmo caráter de ineditismos, excessos, tanto na reação do Estado na tentativa de organização e de contenção dos manifestantes, quanto destes, ao se utilizarem de máscaras e adornos similares, para, sob o manto do anonimato, cometerem atos diversos de desordem. Com efeito, atentaram contra a liberdade dos que protestavam de forma legítima e pacífica, contra a segurança própria e a de terceiros e contra a propriedade pública e privada. Vastos foram os relatos de danos ao patrimônio e os incidentes com vítimas.
Diante desses fatos, o Estado, ao meu sentir, acertadamente, cogitou em proibir – e paulatinamente assim vem procedendo – o uso de máscaras nas manifestações de rua. A proibição afere-se como legal e pode ser compreendida como uma extensão do direito de manifestação do pensamento, sob a condição de vedação ao anonimato, direito este previsto no art. 5.º, IV, da CF/88, ao prescrever que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
Ora, se a simples exposição do pensamento deve submeter-se à proibição do anonimato – e isto se insere, por óbvio, para a garantia de possibilidade de responsabilização do autor da conduta em caso de resultados danosos -, mais ainda se devem vedar ações apócrifas de indivíduos que se dispõem não somente à manifestação do pensamento em abstrato, mas também a se empregarem na concretização material desse pensamento, transformando-o em ações de tumultuo dentro dos movimentos sociais e de atos de agressão às pessoas e de depredação do patrimônio.
As liberdades de locomoção, de expressão e de reunião, expressas na CF/88, devem ser exercidas sob um prisma de harmonia com os demais preceitos constitucionais e sob a óptica do dever de não lesão, princípio de alteridade maior do Direito e regente do convívio em sociedade. Os direitos à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem cedem espaço à ação estatal a partir do ponto em que sejam utilizados para a promoção da desestruturação da ordem pública – essa é a essência do Contrato Social externada em Rousseau e também em Hobbes, em que cedemos parcela de nossas liberdades em função da proteção e da assunção de tutela dos direitos individuais e sociais pelo Estado.
As manifestações sociais são legítimas, mas a utilização desse instrumento de exercício da democracia como anteparo à prática de condutas ilegais e criminosas, por meio de atores anônimos, fere a própria essência do Estado Democrático de Direito, primeiramente, porque impede a responsabilização do infrator – interesse de todo o corpo social – e, não obstante, porque passa a expor o movimento como um todo a um viés de ilegitimidade perante a sociedade, suprimindo, assim, por via reflexa, a viabilidade de exercício do direito constitucional de reunião e manifestação.