Relatório mineiro vê caixa 2 sem disfarce

27 de setembro de 2007 09:54

Antonio Fernando: procurador deve se pronunciar nos próximos dias sobre o esquema de desvio de recursos públicos para o financiamento eleitoral em MG
O chamado “mensalão mineiro”, sobre o qual o procurador geral da República, Antonio Fernando de Souza, irá se pronunciar nos próximos dias, tem pelo menos duas diferenças em relação ao esquema nacional de desvio de recursos para financiamento de políticos, também da lavra do publicitário Marcos Valério de Souza. Está claro o uso dos recursos para caixa 2 da campanha eleitoral de 1998 e não para garantir votações favoráveis ao governo no Legislativo, como dizem os tucanos. Mas, ao contrário do que ocorreu em relação ao mensalão nacional, a ligação entre verbas públicas e pagamentos a políticos mostra-se sem disfarces.

O inquérito da Polícia Federal assinado pelo delegado Luiz Zampronha – sobre o qual Antônio Fernando já sinalizou reservas – consegue estabelecer uma conexão entre pagamentos de Marcos Valério a coordenadores da campanha de Eduardo Azeredo, assessores de candidatos e deputados e o recebimento de dinheiro público.

O inquérito sobre o caso mineiro liga cada liberação de recursos para políticos a determinadas verbas estatais. No mensalão nacional, está comprovado o desvio de recursos da Visanet, um fundo controlado pelo Banco do Brasil, para as contas de Marcos Valério.

No mensalão nacional, consegue-se estabelecer que o publicitário usou estes montantes para liquidar os empréstimos bancários que fazia para justificar seu fluxo de despesas com o mensalão, mas a pulverização dos pagamentos a políticos ao longo de um ano e meio apagou os traços mais evidentes dos repasses. Não se detecta qual deputado ou assessor recebeu recursos diretamente derivados dos cofres públicos. Segundo o relatório da CPI dos Correios, Valério anotou parte dos recursos da operação como destinados “a empréstimos ao PT”.

Assim como no caso nacional, no caso mineiro Valério lançava mão de uma operação triangular. Suas empresas de publicidade tomavam empréstimos bancários, Banco Rural e BMG, no caso nacional e , no caso de Minas, o Rural, o Cidade e o BCN, posteriormente incorporado pelo Bradesco. Pouco tempo depois, o empréstimo era quitado pelo recebimento de uma cota publicitária de um órgão público. No meio tempo, havia a distribuição política dos recursos.

Um dos casos mais documentados é o da Cemig. A estatal mineira de energia desembolsou em 21 de outubro de 1998 R$ 1,673 milhão, para o pagamento de uma campanha educativa. O inquérito policial lembra que o alto valor da campanha chamou a atenção do Tribunal de Contas Estadual, que investigou o tema.

Foram apresentadas notas fiscais para justificar os gastos. Entre eles, uma de R$ 1,4 milhão, emitida pela gráfica Graffar, empresa que produzia material para a campanha de Azeredo. Não há registro de saída deste dinheiro das contas das empresas de Valério para a Graffar.

O que há nos dias 21, 22 e 23 de outubro é um derrame de retiradas para atividades de campanha. Dois assessores da campanha da candidata derrotada ao Senado, Júnia Marise (PDT), retiram R$ 200 mil. Há retiradas ainda para Alencar Silveira Júnior, Navarro Vieira, Amilcar Martins, Ermano Batista Filho, Wanderley Geraldo de Ávila, Custodio de Mattos, Bilac Pinto Neto, Olinto Dias Leite, Maria Olivia Oliveira, Carlos Figueiredo, Ajalmar Silva e Elmo Braz Soares, todos candidatos proporcionais na coligação de Azeredo.

Houve depósitos ainda para parentes e assessores dos deputados Agostinho Patrus, Dilzon Melo, Bené Guedes, Mauri Torres, Sebastião Helvécio, José Militão e Hely Tarquino. Todos estes candidatos mantiveram seus comitês abertos depois do primeiro turno eleitoral, para se engajarem na batalha de Azeredo contra Itamar Franco no segundo turno. A Polícia não conseguiu rastrear nenhum pagamento relativo à Cemig. Um dos coordenadores da campanha de Azeredo era o presidente licenciado da Cemig, Carlos Eloy.

À mesma época, Valério quitou um empréstimo contraído no BCN em 14 de agosto, de R$ 1,4 milhão, tornando nebulosa qual das duas fontes foi usada para financiar os candidatos. O inquérito ressalta que este era um artifício do publicitário. “Este contrato de mútuo (empréstimo) foi também uma simulação praticada por Marcos Valério para conferir aparência legal aos fundos que seriam reunidos pelo coordenador financeiro da campanha de Eduardo Azeredo”, escreve o delegado Zampronha.

O mesmo esquema foi usado no patrocínio inflado de estatais a eventos esportivos. Duas competições, o “Enduro da Independência” e o “Campeonato Mundial de Motocross” receberam R$ 3 milhões, repartidos igualmente entre Copasa e Comig, as empresas mineiras de saneamento e mineração. Os presidentes das duas empresas, Ruy Lage e Carlos Alberto Cotta, também se licenciaram para trabalhar na campanha. O inquérito comprova o absurdo dos valores: para aparecer com mais destaque na propaganda do evento, a Honda pagou R$ 25 mil e o BH Shopping, R$ 62 mil. No rastreamento das contas dos publicitários dias após os pagamentos das duas empresas, que aconteceram nos dias 24 e 25 de agosto e 4 de setembro, apenas um pagamento, de R$ 50 mil, estava relacionado ao enduro.

Receberam valores, contudo, Otimar Bicalho, encarregado da pintura de muros, Aristides França Neto, coordenador da campanha, os prestadores de serviço Patricia Ferreira Tavares, Guilherme Perpétuo Marques, Leonardo Lara e Alexandre Silva, o empresário de showmícios Roberto Gontijo e os candidatos a deputado Paulo Cury e Wagner Nascimento Junior. Novamente para misturar a origem dos recursos, foram contraídos dois empréstimos, de R$ 3 milhões cada, junto ao Banco Cidade, na véspera da última liberação dos patrocínios. O mesmo mecanismo se repete em relação a um suposto patrocínio de R$ 500 mil do Bemge, o então banco estatal, a uma competição de bicicross, liberado em 1º de setembro.

Mais uma vez não há nos desembolsos qualquer vestígio de gastos com corridas de bicicletas, mas um depósito chamou a atenção policial: R$ 15 mil para Lidia Maria Alonso Lima. À época, segundo o inquérito, Lidia trabalhava para uma empresa de factoring de Andréia Neves da Cunha, irmã do atual governador mineiro Aécio Neves. O inquérito policial menciona que Lidia foi a sócia de Andréia em outra empresa, a Taking Care. Ao depor, Lidia Maria disse que recolheu o valor para Eduardo Brandão, já falecido, um candidato a deputado pelo PMDB que estava desertando da campanha de Itamar Franco. Procurada, a assessoria do governo mineiro disse que a sociedade com Andréia ocorreu no ano seguinte ao da operação e já havia se encerrado em 2005, data do depoimento de Lidia.

O relatório da CPI analisado por Antonio Fernando desenhou um quadro semelhante no mensalão nacional. O deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR) também detectou nove empréstimos do BMG e do Banco Rural que proporcionaram R$ 55,3 milhões a Marcos Valério entre fevereiro de 2003 e julho de 2004.

Os congressistas procuraram estabelecer uma relação entre as atividades publicitárias de Valério, o pagamento destas dívidas e a distribuição política de recursos, investigando a antecipação de recursos feita a Valério pelo fundo Visanet, controlado pelo Banco do Brasil. Entre 12 de maio de 2003 e 18 de maio de 2004, foram entregues ao publicitário R$ 73 milhões.

Eram adiantamentos de recursos para campanhas publicitárias, feitos de um modo que Serraglio descreveu como “um tipo de relação comercial não usual”, caracterizando um favorecimento para a DNA, a agência de Valério, que pôde ficar com o dinheiro em caixa “com liberdade para usá-lo de acordo com suas necessidades e sem monitoramento pelo Banco do Brasil” . O primeiro valor liberado – R$ 23,3 milhões – foi usado para a quitação de um empréstimo de R$ 19 milhões. O relatório afirma que a parcela de R$ 35 milhões liberada em março de 2004 foi usada para pagar um empréstimo de R$ 10 milhões feito pelo sócio de Marcos Valério, Rogério Tolentino ao BMG, cujo montante foi distribuído para políticos .

Embora o uso do mensalão nacional na campanha eleitoral como caixa 2 apareça em diversos pontos do relatório da CPI, tanto o relator Osmar Serraglio (PMDB-PR), quando posteriormente Antonio Fernando e o plenário do Supremo Tribunal Federal entenderam que era consistente a acusação de que os pagamentos semanais feitos por Marcos Valério às intermediárias Garanhuns e Bônus Banval para deputados e assessores tinham como objetivo a compra de votos no Legislativo. Para isso a peça de acusação procurou identificar a liberação de dinheiro com a agenda de votações na Câmara. Já no caso mineiro, o desvio de dinheiro público está explicitamente vinculado a caixa 2: praticamente todos os beneficiados estavam diretamente envolvidos na campanha, como coordenadores ou candidatos.