Tragédia de Santa Maria: até capitais ignoram número de boates

5 de fevereiro de 2013 12:05

Enquanto prefeituras e bombeiros em todo o país anunciam ações conjuntas para fiscalizar e interditar casas noturnas, levantamento feito pelo GLOBO nas dez principais capitais brasileiras mostrou que apenas quatro delas – Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Curitiba – sabem uma informação básica: quantas casas noturnas funcionam em seus territórios. As prefeituras de São Paulo, Fortaleza, Recife e Brasília dizem desconhecer o dado, e as de Manaus e Porto Alegre não responderam ao questionamento.

Das dez prefeituras consultadas, apenas a da capital baiana informou o número de boates com capacidade para mais de mil pessoas – o que, segundo especialistas, exige normas de segurança e fiscalização ainda mais estritas. Elas são dez. As demais não repassaram o dado à reportagem.
 
Outro agravante é que o número de boates fornecido pelas prefeituras diferiu dos dados que constam nos registros da Receita Federal. A prefeitura de Salvador, por exemplo, diz que a cidade tem 291 boates e casas noturnas. Segundo a Receita, são 44. O Rio fala em 374, mas a Receita aponta 179. Curitiba diz que são 204, mas o órgão federal afirma serem 63, e Belo Horizonte conhece 58 boates, mas, segundo a Receita, são 92 contribuintes.
 
Ainda no mesmo levantamento, somente Rio, Salvador, Curitiba, São Paulo e Belo Horizonte informaram quantos funcionários fiscalizam esses estabelecimentos noturnos. São 300, 70, 32, 769 e 400, respectivamente. Mas, além da fiscalização municipal, esses locais precisam passar pela avaliação dos Corpos de Bombeiros, que são vinculados ao governo estaduais.
 
Sem informação dos bombeiros
 
Cabe aos bombeiros inspecionar a segurança em caso de incêndio e pânico. Se aprovados, recebem o auto de vistoria. Se reprovados, devem fazer as adequações exigidas. De oito unidades da federação consultadas pelo GLOBO, apenas Minas Gerais informou quantas casas noturnas e boates foram vistoriadas no ano passado e qual foi o resultado dessas inspeções – 19 das 47 inspecionadas foram reprovadas. Rio de Janeiro, Pernambuco e São Paulo informaram o total de vistorias em estabelecimentos em geral: 15.901, 33 mil e 35 mil, respectivamente. Ceará, Bahia e Paraná não encaminharam respostas.
 
Em Brasília, a Agência de Fiscalização do Distrito Federal (Agefis), ligada ao governo do DF, interditou 250 bares e casas noturnas por falta de alvará de funcionamento ao longo de 2012. Além disso, 650 estabelecimentos foram notificados por problemas. Na esteira da tragédia de Santa Maria (RS), a Agefis anunciou que anteciparia o início da fiscalização de bares e casas noturnas do DF, prevista inicialmente para começar em fevereiro. A primeira operação foi realizada na noite do dia 31 de janeiro, interditando 16 estabelecimentos, dentre os 30 vistoriados. A Agefis informou, no entanto, que não dispõe de um levantamento sobre quantas interdições realizou em anos anteriores.
 
Empresários do setor e funcionários públicos culpam a descentralização e o excesso de burocracia pela dificuldade em compilar esse tipo de dado e cobram que uma lei federal regulamente o setor. As leis são todas municipais, o que faz com que itens como a duração dos alvarás concedidos às casas noturnas variem de um lugar para o outro. Em São Paulo, por exemplo, as licenças precisam ser renovadas anualmente. No Rio, os alvarás são concedidos sem um prazo preestabelecido.
 
– É praticamente uma zona. O fato é que o poder público simplesmente desconhece onde existem aglomerações de pessoas nas grandes cidades brasileiras. Nossa estimativa é que hajam ao menos 25 mil casas noturnas funcionando em todo o país, 10% delas comportando mais de mil pessoas. Isso sem contar os bailões itinerantes, eventos mais informais que chegam a reunir milhares, em ambientes fechados, nas periferias – diz Fábio Aguayo, da Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas (Abrabar) do Paraná, entidade ligada à Confederação Nacional do Turismo, que compilou dados a pedido do GLOBO.
 
A polêmica da comanda
 
Para Percival Maricato, diretor jurídico da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), pelo menos a metade dos locais que concentram muita gente no Brasil são desconhecidos do poder público, e ele sugere que este, ao lado da sociedade civil, busque melhores soluções para garantir a segurança de seus clientes e frequentadores.
 
– Não adianta também colocar normas super rígidas que sabemos que não serão cumpridas. As pessoas vão continuar buscando entretimento. Regras que valem para uma boate nos Jardins (zona nobre paulistana) não são aplicáveis aos bailões sertanejos da periferia. O que precisamos é que as autoridades saibam onde essas pessoas vão se encontrar. Por isso sou a favor dos polos de entretenimento, você concentra bares e boates numa determinada região e coloca uma patrulha de Bombeiros bem ali – propõe Percival.
 
Outra questão, que dificultou a saída dos clientes da boate Kiss, no Rio Grande do Sul, é a da comanda, documento definido pela paulistana Marisa Gyotokv, consultora de investimentos de 42 anos, como "cárcere privado". Ao lado das amigas Stephany Pedotti, de 24 anos, Flavia Barbosa, de 19, e Eliane Nakayama, de 41, Marisa sai até três vezes por semana e desembolsa até R$ 300 por noite. Na porta da Villa Mix, uma das maiores boates de São Paulo (capacidade para mais de 2 mil pessoas, situação regularizada, oito portas de incêndio e 27 extintores), as amigas discutiam o que aconteceu na boate Kiss.
 
– Já vimos briga em boate. Os seguranças não deixam ninguém sair enquanto não se paga a comanda. Por que não pagar a entrada e a bebida à medida que consumimos? Outra coisa são os foguinhos. Muito comuns. Colocam em velinhas de bolo, baldes de champanhe. E se pega fogo? Que medo. Acho que tudo isso deveria ser proibido.
 
Professor de direito do consumidor da PUC-SP, Rizzatto Gomes faz um abaixo-assinado pelo fim dos cartões de consumação no site change.org/comandanao. Ele entende que os cartões, "além de enganar o consumidor que perde o controle de seus gastos, viola seu direito de ir e vir".
 
De acordo com a Abrabar, o setor das casas noturnas no Brasil não para de faturar, movimentando em torno de R$ 4,25 bilhões anuais e sendo o maior gerador de emprego do setor turístico do país.
 
– Pela quantidade de dinheiro e de gente que esses estabelecimentos atraem, eles mereceriam mais atenção do poder público – conclui Fábio Aguayo. 

Segurança na Polícia Federal
 
Para 2013, a Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) já tinha previsto a aplicação de uma pesquisa entre seus associados para avaliar a segurança das instalações físicas da Polícia Federal, bem como as condições de trabalho dos servidores. A tragédia de Santa Maria reforçou a necessidade de investigar a situação, como forma de preservar a integridade física e a segurança no ambiente de trabalho. O link para responder o questionário online será encaminhado aos delegados federais por e-mail. Os dados consolidados serão encaminhados à Direção Geral da Polícia Federal e ao Ministério da Justiça para as medidas necessárias.