Um olhar sobre a corrupção

13 de fevereiro de 2017 15:18

A Delegada Federal Érika Marena, primeiro nome na lista tríplice da ADPF com indicações à Diretoria-Geral da Polícia Federal, conversou com a Revista Delegados Federais em Brasília, antes de participar de uma audiência pública na Câmara dos Deputados sobre o Projeto de Lei Anticorrupção.

 

Érika, hoje, é uma das maiores autoridades brasileiras no assunto: por ter investigado graves esquemas de desvios de recursos públicos como uma das coordenadoras da Lava Jato, ela percebe, com muita clareza o atual cenário do país.

 

Érika Marena afirma que há no Brasil uma cultura da impunidade, que, ao impedir a punição daqueles que praticam delitos, acaba incentivando as pessoas comuns a transgredirem as regras em pequenas coisas.

 

Apesar dos avanços dos últimos anos, a Delegada Federal afirma que muito mais organizações criminosas poderiam ter sido desmanteladas se houvesse investimentos consistentes na Polícia Federal.

 

Entrevista com Érika Marena

 

A corrupção é um problema histórico no Brasil, que remonta ainda ao período colonial. Nos últimos anos, o tema tem ganhado cada vez mais relevância, não só nos meios de comunicação, mas também nas conversas populares do dia a dia. Por quê?

 

Eu atribuiria a três fatores: em primeiro lugar, houve, sim, incremento nas investigações de combate à corrupção. Vemos isso diuturnamente, tanto em âmbito federal como em âmbito estadual. Em segundo lugar, a imprensa passou a dar mais atenção ao assunto, com uma cobertura maior, mais detalhada, sempre com atualizações para a população. Em terceiro, temos de levar em conta a modernidade. Hoje temos meios de comunicação instantâneos, redes sociais, aplicativos de troca de mensagens – tudo é notícia imediata e facilita o compartilhamento de informações. Pessoas passam a ter mais conhecimento, com mais rapidez e profundidade, daquilo que as instituições estão fazendo, passam a ter noção do tamanho do problema. Os meios de comunicação têm despertado o interesse de todos para o tema, o que faz com que haja felizmente uma maior discussão a respeito da problemática da corrupção. 

 

É bastante corriqueira a afirmação de que, de tão disseminada, a corrupção tornou-se parte da cultura nacional. A senhora concorda?

 

Eu acredito que tudo esteja dentro de um pacote que menciono como cultura da impunidade. Vou cometer o desvio porque não me acontece nada. É meu direito levar essa vantagem, já que os políticos também levam e não são punidos. Nós estamos investigando a corrupção e percebemos que há altas camadas do poder envolvidas. Mas temos de pensar no nosso dia a dia, naquilo que podemos fazer para que tais comportamentos não sejam mais tolerados. É importante que nós fiquemos indignados não só com aquela corrupção lá de cima, aquela que está aparecendo na televisão todos os dias. Temos de abolir esses atos de levar vantagem em cima do próximo, de cometer fraudes para conseguir um benefício qualquer. Todas essas atitudes precisam e já começam a ser condenadas pela sociedade. Não podemos esperar a mudança vir de cima. É preciso começar por nós.

 

Nunca o Poder Público brasileiro respondeu com tanta efetividade às práticas corruptas como ultimamente – período este marcado pela Operação Lava Jato. O que difere essa Operação de outras já realizadas?

 

Houve um conjunto de fatores que possibilitaram à Operação Lava Jato avançar tanto. Ela começou de maneira tímida no âmbito da Polícia Federal, com poucos recursos – apenas eu e mais um colega, o Delegado Federal Márcio Anselmo, estávamos com o caso inicialmente. Não havia policiais ali no início para auxílio da equipe. Com a Operação deflagrada, o Ministério Público rapidamente se estruturou, o que foi fundamental para a rapidez das denúncias e das ações penais. Houve também o auxílio de órgãos como a Receita Federal, a Controladoria-geral da União, o Tribunal de Contas da União, o próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica – enfim, todos os órgãos que deveriam atuar a partir do que estava sendo descoberto. E esses órgãos passaram a produzir resultados também e a fazer as suas descobertas. O Tribunal Regional Federal da 4ª Região teve sensibilidade ao atribuir à 13ª Vara Federal de Curitiba a exclusividade em relação aos casos da Lava Jato – o que possibilitou maior rapidez e agilidade na instrução das ações penais, nas sentenças. As instituições tiveram maturidade para dar a atenção devida no momento em que perceberam que o problema era muito maior do que se via no começo. A Polícia Federal aumentou o número de policiais designados para o caso, ainda que muito inferior ao que eu reputo como ideal, porque o caso é muito grande. Para se ter uma ideia, o número de Delegados envolvidos é a metade do número de procuradores. Caso tivéssemos esse número igual ou maior, muito mais poderíamos ter avançado.

 

Além do desmantelamento de esquemas criminosos então vigentes e da descoberta de desvios ocultos do passado, a Operação Lava Jato tem o potencial de influenciar o futuro?

 

Eu acredito que sim, até certo ponto. A Operação Lava Jato tem o mérito de trazer para a sociedade a noção de que é possível, sim, ter uma resposta rápida para esse tipo de investigação, esse tipo de processo. Havia, até então, a noção de que o Brasil era o país da impunidade, de que as provas prescreviam ou eram anuladas. A Operação Lava Jato trouxe uma robustez da prova muito grande, tanto que mais de 90% dos recursos não foram providos. Os Tribunais Superiores confirmaram a legalidade de tudo que foi feito, não acataram os argumentos que as defesas vêm apresentando quanto a eventuais nulidades ou irregularidades cometidas na investigação. As provas foram colhidas de maneira eficaz, as condutas criminosas foram efetivamente demonstradas, há um grau grande de colaborações premiadas, de devolução de recursos desviados. A sociedade viu que é possível ter um resultado. Então, se aquele que pensa em se corromper olhar para a Lava Jato, poderá pensar “talvez um dia eu seja pego”. Com certeza, isso vai contribuir para mudar um pouco essa cultura. Não acho que vai mudar a cultura do Brasil de uma forma definitiva e globalmente considerável, mas a Operação Lava Jato contribui para dar início a uma nova forma de a população ver os órgãos de investigação e a Justiça.

 

A efetividade alcançada pela Polícia Federal nos últimos anos no combate à corrupção contrasta diretamente com a realidade de cortes de investimento. Como a PF consegue desempenhar um bom trabalho, apesar de cada vez maior a restrição orçamentária?

 

O bom trabalho que a Polícia Federal desempenha poderia ser muito maior. Esse aparente aumento no número de operações e investigações é uma impressão que surge porque a imprensa vem dando um destaque muito bom, acompanhando todas essas ações. Isso dá a impressão de que a PF está com todos os recursos liberados, tudo funcionando a pleno vapor – com seus investimentos sendo aumentados pelo governo. Mas isso não é verdade. Nós não conseguimos há muitos anos abrir novas unidades. Ao mesmo tempo em que a Justiça Federal e o Ministério Público Federal vêm se interiorizando, a Polícia Federal não consegue acompanhar por falta de investimento. Nós não temos pessoal suficiente para poder alocar nas nossas unidades de combate à corrupção e crimes financeiros adequadamente. Para cada Operação de combate à corrupção, temos outras dez na fila. Então, parece que tudo está uma maravilha, mas, na verdade, esse é um quadro parcial. Poderíamos alcançar muito mais. tem um enorme potencial de trabalho. Os casos são muitos, então, se tivesse pessoal suficiente, unidades suficientes, a população veria, aí sim, o que a PF pode fazer como contribuição para o combate à corrupção no país.

 

A lei prevê a existência de 2.300 cargos de Delegados Federais. Mas, hoje, apenas 1.760 destes postos estão ocupados. Quais as consequências práticas desse esvaziamento?

 

A consequência é que as nossas unidades estão acumulando cada vez mais casos para menos pessoas. Um número menor de policiais tem de lidar com uma quantidade maior de trabalho. Há menos tempo para atuar em cada um dos casos. Temos o princípio da obrigatoriedade, que nos impede de eleger o que é prioritário. Se há vários inquéritos – por exemplo, um apurando um desvio de milhões, outro envolvendo cédulas falsas com nenhuma perspectiva de se encontrar quem a fabricou – você tem de dar a mesma atenção. Você tem, por lei, prazos e normas a serem cumpridos, e você vai ser punido se deixar o da moeda falsa para dar atenção a este que investiga milhões de reais. Temos de repensar a questão da obrigatoriedade justamente porque não temos recursos suficientes, porque esse número de Delegados já é baixo e vai ficar mais baixo nos próximos anos caso não haja recursos para repor esse pessoal. Se não repensarmos essa obrigatoriedade nos inquéritos, os casos de maior complexidade, como corrupção e lavagem de dinheiro, vão acabar sofrendo as consequências de uma menor eficácia na sua tramitação.

 

A nomeação do Diretor-Geral da Polícia Federal por meio de escolha interna da categoria – a ADPF já organizou uma lista tríplice – contribuirá para uma maior valorização da Polícia Federal?

 

A Polícia Federal não é um órgão de governo, mas um órgão de Estado, que tem de servir à população, à sociedade brasileira. E a eleição do Diretor-Geral pela classe dos Delegados, por meio desse processo todo que a ADPF realizou recentemente, indica um amadurecimento da nossa classe, indica a vontade que se tem de ter uma gestão não vinculada ao governo do momento, ainda que reconheçamos que as políticas públicas de segurança sejam de competência do Executivo. A execução dessas políticas dentro da PF, a gestão dos recursos, dos cargos, necessita ser técnica, e não contar com gestores que podem ter sido escolhidos por uma afinidade política, como hoje acontece.

 

Em que medida a experiência da senhora na atividade será útil à Polícia Federal? Tanto do ponto de vista do desempenho das funções da PF, como da perspectiva do fortalecimento de sua autonomia?

 

Acredito que, não só a minha experiência, como a de todos os outros candidatos, Rodrigo de Melo Teixeira e Marcelo Eduardo Freitas, serão úteis porque cada um de nós teve a oportunidade de conhecer os problemas que afligem nossa instituição e que impedem que ela siga adiante em vários aspectos. Então, temos uma linha de pensamento muito semelhante com relação à percepção desses problemas, mesmo tendo atuado em estados e áreas diferentes. Durante todo o processo que a ADPF conduziu de formação dessa lista, pudemos constatar que a nossa visão dos problemas é muito semelhante, assim como as propostas de respostas a eles. Qualquer um da lista vai ter condições de começar e tentar dar uma resposta adequada para aquilo que aflige tanto a nossa instituição.

 

Os Delegados de Polícia Federal têm defendido publicamente a aprovação da PEC 412. A proposição garantirá, de fato, a Autonomia da PF e, consequentemente, o fim das quedas de investimento?

 

A PEC 412 prevê que Lei Complementar vai dispor sobre a nossa autonomia e os limites dela – administrativos, orçamentários, funcionais. Acredito que, se os nossos parlamentares derem esse voto de confiança na instituição Polícia Federal, os resultados vão ser os melhores possíveis para a sociedade. Essa autonomia é o que precisamos para efetivamente alocar recursos naquelas áreas que demandam nossa maior atenção, como o combate à corrupção. 

 

A senhora é uma das professoras da Escola Nacional dos Delegados de Polícia Federal. O oferecimento desses cursos, além da preparação para as provas dos concursos, também contribuirá para a formação cidadã dos novos Delegados?

 

Eu acredito que os cursos da EADelta tenham a possibilidade de trazer o aluno para um ambiente muito próximo da PF, sua realidade, seus dilemas e desafios. Acredito que eles possam passar a ter consciência da relevância dessa instituição para a sociedade, e, tendo essa consciência, passar também a cobrar do governo melhores condições para funcionamento dessa instituição. A EADelta, além dos cursos para concursos, pode sim contribuir para formar essa consciência cidadã para seus alunos, na medida em que vai mostrar a eles um pouco da nossa realidade, do nosso trabalho – de modo que eles poderão cobrar uma Polícia Federal autônoma, com melhores serviços a serem prestados à população brasileira.

 

Como foi a sua presença, como mulher, à frente de uma Operação como a Lava Jato, em uma instituição que é tipicamente dominada pelos homens?

 

Na prática, eu particularmente nunca me vi em uma situação em que identifiquei algum tipo de preconceito trabalhando neste ambiente eminentemente masculino. Sabemos que existe esse preconceito. Na Polícia Federal, basta você comparar a porcentagem de Delegadas que ocupam cargos considerados hierarquicamente superiores frente a porcentagem de Delegadas existentes na Polícia Federal. A diferença é muito grande. Isso demonstra que a Polícia Federal também tem sua carga de preconceito na indicação de mulheres para postos de chefia. Mas não é um problema exclusivo da Polícia Federal. No meu trabalho, não identifiquei ainda restrição à minha pessoa por ser mulher. Muitas vezes, a gente identifica isso por parte dos investigados. Por eu ser mulher, talvez eles entendam que a situação não será assim tão dura para eles. Mas, eu vejo o preconceito, a parte mais ostensiva, no momento em que são escolhidos os cargos considerados de maior relevância: eles são majoritariamente ocupados por homens. Ainda há um longo caminho a percorrer até que possamos quebrar definitivamente todas essas barreiras de preconceito.