Uma reação à policialização da acusação no Brasil

28 de fevereiro de 2013 18:16

 
“Caso seja aprovada a PEC nº 37/11, em nada será afetado o salutar controle externo da atividade policial, exercido pelo Ministério Público. Destarte, não se pode falar em ‘PEC da Impunidade’ se ao Ministério Público compete fiscalizar o trabalho policial, complementá-lo por meio de requisição e prevenir eventuais omissões.”

Tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda Constitucional nº 37/11, de autoria do Deputado Lourival Mendes. A proposta nasceu da necessidade de garantir segurança jurídica ao cidadão, quanto ao devido processo legal na condução das investigações criminais no Brasil. 
 
É basilar para o sistema acusatório vigente no País o equilíbrio das partes e a imparcialidade no processo de realização da justiça criminal, desde a conduta delituosa até o trânsito em julgado da decisão decorrente, com a função essencial de conter os excessos e abusos do poder punitivo do Estado.
 
Na linha da tendência universal da Corte Europeia dos Direitos do Homem, merece especial atenção o respeito à proporcionalidade do processo penal, devendo-se garantir às partes a paridade de armas. Assim, a Constituição Cidadã de 1988, preocupada com a dignidade da pessoa humana, adota um sistema de freios e contrapesos por meio do qual atribui à Polícia Judiciária a função de investigar as infrações penais, delegando o controle externo da atividade policial ao Ministério Público. Por outro lado, restringe os poderes investigatórios do órgão ministerial em favor da proteção das pessoas submetidas à investigação criminal.
 
Bem por isso, não se sustenta a tese de que é lícito e legítimo a quem acusa, a quem atua como fi scal da lei, também investigar direta e paralelamente à Polícia Judiciária, sem expressa previsão legal, sobretudo quando a norma constitucional assegura ao Ministério Público o poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial.
 
Entretanto, membros do Ministério Público têm manifestado insatisfação com relação à referida proposta legislativa, denominando-a, levianamente, de “PEC da Impunidade”. Os argumentos utilizados por estes, entretanto, não merecem prosperar.
 
Diferentemente do afi rmado por promotores e procuradores, no Substitutivo aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, não existe nenhum comando que altere ou suprima qualquer das atribuições constitucionais do Ministério Público, todas definidas no art. 129 da Constituição, em especial nos incisos VII e VIII.
 
O Ministério Público, mesmo com a aprovação da proposta em comento, manterá suas prerrogativas de participar ativamente da investigação criminal realizada pela Polícia Judiciária, por meio de requisições de instauração de inquérito policial e de diligências investigatórias. 
 
Caso seja aprovada a PEC nº 37/11, em nada será afetado o salutar controle externo da tividade policial, exercido pelo Ministério Público. Destarte, não se pode falar em “PEC da Impunidade” se ao Ministério Público compete fiscalizar o trabalho policial, complementá-lo por meio de requisição e prevenir eventuais omissões.
 
As investigações já realizadas pelo Parquet, sem amparo legal (afinal, qual é a lei que regulamenta a realização, limites e controle de investigação criminal pelo órgão ministerial?), ficam totalmente ressalvadas pela modulação dos efeitos, inserta no art. 3º do Substitutivo aprovado. Além disso, o texto aprovado pelos deputados federais, em seu art. 1º, reitera a preservação das atribuições constitucionais das Polícias Legislativas, das Comissões Parlamentares de Inquérito, bem como dos Tribunais e do próprio Ministério Público em relação aos seus membros.
 
Igualmente resguardadas estão as apurações de infrações administrativas realizadas pelos órgãos de controle, com reflexos na seara criminal, cujo resultado continua servindo de base para a propositura de ação penal pelo Ministério Público ou, se insuficiente, para requisição de instauração de inquérito policial. Isto é, não será afetada a rotina de órgãos tais como CGU, TCU, COAF, CVM, Bacen, IBAMA, INSS e Receita Federal.
 
Também não é verdade, como apregoam alguns membros do Ministério Público, que os países mais “desenvolvidos” adotam o paradigma de investigação ministerial. Inglaterra e Austrália, por exemplo, adotam modelo semelhante ao brasileiro. Por outro lado, Uganda e Indonésia adotam a versão com o Ministério Público investigador.
 
Ademais, em países em que a lei prevê a investigação criminal pelo órgão ministerial, este se torna responsável por investigar tudo, e não escolhe casuisticamente o que apura. O Parquet não pode e não será o mesmo que oferece a denúncia e acompanha o processo, como deseja o congênere brasileiro.
 
Por último, caso se efetive o modelo em que o Ministério Público acumula as funções de órgão investigador, acusador e fiscalizador, os riscos serão imensuráveis aos direitos e garantias fundamentais do cidadão investigado. Com a agravante de que os procedimentos investigatórios, neste caso, não estarão previstos em lei e não se submeterão a qualquer controle externo ou jurisdicional. Logo, é inaceitável esse desvirtuamento do sistema acusatório.
 
O que a sociedade brasileira espera é uma investigação colaborativa, em que todos os atores do sistema de persecução penal (autoridade policial, promotor, defensor e juiz) atuem como equipe comprometida com a salvaguarda da dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito.
 
Nesse contexto, a Polícia Judiciária não deve ser tutelada para atuar em favor do órgão acusatório, mas deve ser livre no seu convencimento e na apuração sobre os fatos investigados. De outra forma, a defesa também pleitearia, como vem pleiteando nos países em que o Ministério Público é investigador, produzir suas próprias provas, em uma verdadeira  investigação defensiva, como forma de equilibrar a paridade de armas com a acusação. No Brasil, porém, a Polícia Judiciária é isenta, disto decorrendo que o resultado da investigação é a verdade que servirá igualmente à acusação e à defesa.
 
Neste contexto, o inquérito policial deixa de ser apenas um procedimento investigatório preliminar inquisitorial para se tornar instrumento de garantia dos direitos fundamentais do cidadão, seja ele vítima, suspeito, indiciado ou investigado.
 
Por fim, esse fenômeno de policialização do Ministério Público esvazia as funções, as atividades e, consequentemente, os recursos que deveriam ser destinados às Polícias Judiciárias, já tão esquecidas pelos gestores de segurança pública, deixando-lhes apenas a obrigação de investigar, sem os meios necessários, todos os demais crimes que diuturnamente batem às portas das delegacias e, cujas vítimas e perpetradores, insignes desconhecidos, não rendem holofotes.

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MARCOS LEÔNCIO SOUSA RIBEIRO é presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) e membro do Conselho Nacional de Segurança Pública (Conasp).