Visos sobre a Portaria no Processo Regular Disciplinar

1 de agosto de 2013 10:43

Nenhuma acusação disciplinar pode fundar-se sem o necessário e compreensível suporte fático jurídico.

Com efeito, as peças acusatórias devem definir com clareza os tipos disciplinares ocorridos, em tese.

Isso ocorre porque somente a lei – e não os gestores – tem a função de tipificar condutar ilícitas.

Quando se diz que há necessidade de justa causa para a instauração de regular processo disciplinar quer-se dizer que não se pode instaurá-lo para que, de modo genérico, no seu curso, resulte apurado se houve ou não falta funcional.

Ou seja, não se pode instaurar processo disciplinar para apurar “não sei o quê” contra “não sei quem”.

É preciso um fato determinado prévio ou uma suspeita que viabilize o necessário fumus boni iuris.

A portaria que instaura processo disciplinar decorre da obrigação legal de se promover a imediata apuração de irregularidade no serviço público. Não se trata de ato discricionário do gestor disciplinar. Não é ato de mero capricho…

A Administração Pública tem o dever poder de apurar fatos que detecta como supostamente irregulares. Trata-se de um dever potestativo vinculado e indisponível.

Ou seja, a Administração Pública quando se depara com situações em que a conduta de determinado servidor se amolda, em tese, como transgressão disciplinar não dispõe de discricionariedade para deixar de apurar.

O ideal de Justiça não é um privilégio exclusivo da atividade jurisdicional, de modo que a Administração Pública não só pode como deve também perscrutá-lo, quando, no exercício do dever disciplinar, processa e julga seus servidores.

Para que isso ocorra é necessário, portanto, que a Administração Pública apure e conclua os processos disciplinares de acordo com o devido processo legal.

Seria absurdo imaginar o contrário, ou seja, imaginar que a Administração Pública diante de indícios de irregularidades quedasse inerte ou impassível.

A exigência de justa causa, como se vê, decorre do direito fundamental que protege a inviolabilidade da honra, da vida privada e do cidadão.

Entre a notícia de irregularidade e a portaria inaugural do processo disciplinar – que daquela vincula – faz-se necessário um exame mental da plausibilidade dos elementos conectivos lógicos aptos à caracterização de um tipo disciplinar, com razoáveis indícios de autoria.

Na perspectiva da Lei 9874/99, seu inciso IV, do parágrafo único, artigo 2º, impõe a observância, pela Administração Pública, nos processos administrativos, da “adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público”.

É da mais cristalina sabença, como nos ensina o ministro Teori Savazky, que “os agentes do Estado somente podem praticar atos para os quais estejam autorizados por norma legal válida”.

Com efeito, o gestor disciplinar pratica atos que se vinculam não à sua vontade, mas à finalidade impessoal e pública, definida em lei.

De lembrar, o sempre atual ensinamento de Marcelo Caetano[1]: “O agente que deixa de observar as disposições regulamentares aplicáveis ao seu serviço incorre em responsabilidade disciplinar e torna-se passível das respectivas penas”.

Há um consenso doutrinário e jurisprudencial de que o fenômeno da “emendatio Libelli” pode ser aplicado pela autoridade julgadora no âmbito administrativo disciplinar de modo a poder dar ao fato definição jurídica distinta desde que se tenha oportunizado ao acusado ampla possibilidade de defender-se sobre todos os fatos a ele imputados.

Isso ocorre porque, a rigor, o indiciado em processo disciplinar se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua classificação legal.

Colaciono, a propósito, do voto vencedor lavrado pelo ministro Napoleão Maia, no MS 14.045-DF[2], na data de 14.04.2010, os seguintes fragmentos de argumentação:

“Com efeito, a ampliação da acusação ou mesmo mudança da tipificação da conduta infracional não determina a invalidade do procedimento porquanto, como cediço, o indiciado se defende dos fatos que lhe são imputados e não de sua classificação legal. A descrição dos fatos ocorridos, desde que feita de modo a viabilizar a defesa do acusado, afasta a alegação de ofensa ao princípio da ampla defesa, exatamente como se deu no caso em tela”. […] “Outrossim, a impetrante sequer apontou os eventuais prejuízos que teriam sido sofridos em razão do indeferimento dos pedidos. Como cediço, o cerceamento de defesa não se presume; tem de ser efetivamente demonstrado por parte de quem argúi, mediante exposição detalhada do vício e sua repercussão. É o chamado princípio do pas de nullité grief, amplamente aceito pela doutrina e jurisprudência pátria”.

Como se vê, durante o trâmite do processo disciplinar, é perfeitamente possível, por exemplo, a ampliação do espectro da acusação desde que se observe o contraditório e a ampla defesa. Confira, no RMS 24526-DF, de que foi relator o ministro Eros Grau, na data de 03.06.2008[3].

De citar, em mais, o bom escólio de Sandro Lúcio Dezan[4]: “Em caso de fatos novos surgidos ao longo da instrução, deve-se proceder ao aditamento da peça inicial de instauração, com vista a proporcionar ao acusado o direito de conhecer previamente da nova imputação a ele atribuída e, com efeito, garantir-lhe o contraditório e a ampla defesa”.  (meus grifos).

Como se vê, é imprescindível que o servidor conheça previamente a imputação que lhe é atribuída, pois, somente assim, sua responsabilização resulta pautada na constatação de conduta subjetivamente praticada (Princípio da imputação subjetiva).

Ora, conhecer previamente a imputação que lhe é atribuída é o mesmo que conhecer, na prática, os fatos que lhe são atribuídos.

O raio de apuração, para efeito do exercício da ampla defesa, deve ser expresso com clareza e com amplitude, no momento do despacho de indiciamento.

Não teria mesmo nenhum sentido lógico exigir-se, na Portaria inicial, antes da apuração propriamente dita, uma capitulação única e definitiva.

É justamente esse o entendimento que advém de modo cristalino do Pacto de São José da Costa Rica, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 22.11.1969, promulgado pelo Decreto 678, de 06.11.1992, segundo o qual: “durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias: (…) comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada”. (meus grifos).

É farta a jurisprudência do STJ – por decisões reiteradas – no sentido de que a portaria inicial de processo administrativo disciplina está dispensada de trazer em seu bojo descrição minuciosa dos fatos a serem apontados pela Comissão Processante, bem como a capitulação das possíveis infrações cometidas, sendo essa descrição necessária apenas quando do indiciamento do servidor.

Senão veja-se:

MANDADO DE SEGURANÇA Nº 9.972 – DF[5] (2004/0129532-8)

RELATORA: MINISTRA MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA.  IMPETRANTE : ELY REIS COSTA DA SILVA. ADVOGADO: JOSÉ PETAN TOLEDO PIZZA E OUTRO(S). IMPETRADO: MINISTRO DE ESTADO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. EMENTA. MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO FEDERAL. DEMISSÃO. PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. NULIDADE DA PORTARIA INAUGURAL E DA PORTARIA DE PRORROGAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. JULGAMENTO EM PRAZO SUPERIOR A VINTE DIAS. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO SERVIDOR. POSSIBILIDADE. REPRESENTAÇÃO POR DEFENSOR CONSTITUÍDO. NÃO CABIMENTO DE NOMEAÇÃO DE DEFENSOR DATIVO. OBSERVÂNCIA DE DEVIDA MOTIVAÇÃO DO ATO DE DEMISSÃO.

1. De acordo com a jurisprudência consolidada desta Corte, apenas quando do indiciamento do servidor, posteriormente à fase instrutória do processo administrativo disciplinar, deve haver a descrição detalhada dos fatos a serem apurados, desnecessária na portaria inaugural do processo disciplinar.

2. Não há falar em nulidade do processo disciplinar por ausência de indicação expressa do nome do servidor na portaria inaugural e por falta de publicação da portaria de prorrogação do processo, ante a ausência de prejuízo a sua defesa, bem como a falta de previsão legal.

3. Não tendo havido qualquer prejuízo ao servidor pela extrapolação do prazo de 20 (vinte) dias para julgamento pela autoridade coatora, não há falar em nulidade do processo disciplinar, em atenção ao que dispõe o artigo 169, § 1º, da Lei nº 8.112/90 e à jurisprudência desta Corte.

4. Tendo sido oportunizada no processo administrativo disciplinar a participação do servidor quando da inquirição das testemunhas, que optou por comparecer pessoalmente a apenas um dos depoimentos, não há falar em ocorrência de nulidade ante a falta de nomeação de defensor dativo pela Administração, considerando-se, ademais, que o servidor já havia constituído um procurador para lhe representar no processo disciplinar.

5. Observância, na espécie, de devida motivação do ato de demissão do servidor público, que apontou provas suficientes da prática de infrações previstas na lei.

6. Segurança denegada.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,acordam os Ministros da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça: A Seção, por unanimidade, denegou a segurança, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Votaram com a Relatora os Srs. Ministros Napoleão Nunes Maia Filho, Jorge Mussi, Og Fernandes, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP), Nilson Naves, Laurita Vaz e Arnaldo Esteves Lima. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Felix Fischer.

Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Paulo Gallotti.

Brasília, 13 de maio de 2009(Data do Julgamento)

Ministra Maria Thereza de Assis Moura

Relatora.

É como penso.

Airton Franco, delegado de Polícia Federal aposentado, ex-SSP/PI e ex-superintendente do DPF no RN.

[1] Caetano, Marcelo. Manual de Direito Administrativo. Coimbra: Coimbra, 1951, pg. 100.

[2] Dados extraídos do site do STJ.

https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=ATC&sequencial=8941506&num_registro=200802822813&data=20100429&tipo=51&formato=PDF

[3] Dados extraídos do site do STF, em 17.10.2012.

http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RMS%24%2ESCLA%2E+E+24526%2ENUME%2E%29+OU+%28RMS%2EACMS%2E+ADJ2+24526%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos

[4] Dezan, Sandro Lúcio. Fundamentos de Direito Administrativo Disciplinar. Curitiba: Juruá Editora, 2011, pg. 465.

[5] Dados extraídos de consulta ao site do STJ no dia 20.07.2013.
https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/revista/abreDocumento.jsp?componente=ATC&sequencial=5337834&num_registro=200401295328&data=20090528&tipo=5&formato=PDF