“Vistas à Polícia…”
Os órgãos envolvidos na persecução penal federal – Polícia Federal, Ministério Público e Justiça -, cada um utilizando as ferramentas legais que lhes são afetos, mesmo enfrentando certas dificuldades ao desempenhar o papel que a sociedade lhes confiou e espera, têm realizado trabalhos importantes no combate à criminalidade.
A Polícia, nos últimos anos vem ganhando um novo status, que infelizmente ainda não é percebido por alguns, mas que já reflete o grau de maturidade dos profissionais que compõem esse importante órgão, bem assim o nível de confiabilidade que a sociedade neles vem depositando. Basta dar uma rápida olhada nas mais recentes leis que conferem à polícia mais poder e mais responsabilidade, tais como as recentes alterações no Código de Processo Penal relativas à concessão de fiança (Lei nº 12.403/11), a recente alteração na lei de combate à lavagem de dinheiro (Lei nº 12.683/12), a nova lei de combate às organizações criminosas e da colaboração premiada (Lei nº 12.850/13), o estatuto da autoridade policial (Lei nº 12.830/13), as recentes alterações na lei de combate às drogas (Lei nº 12.961/14), etc.
E é nesse contexto que a Polícia Federal e a Justiça Federal, no mês de novembro de 2014, se reuniram com o objetivo de ampliar a troca de experiências entre ministros, desembargadores e juízes federais que atuam na área criminal e os profissionais cuja atividade principal é a investigação de crimes. Tal evento, promovido pelo Centro de Estudos Judiciários do CJF, recebeu o nome de Primeiro Diálogo da Magistratura Federal e Polícia Federal.
Para o Ministro Humberto Martins, Corregedor-Geral da Justiça Federal, encontros como esse atendem a uma demanda da sociedade, pois:
“os novos momentos vividos pelo Poder Judiciário têm exigido reflexões mais profundas sobre o exercício da atividade jurisdicional e a necessidade de interação dos magistrados com outros órgãos, em especial a Polícia Federal, para a troca de experiências e a busca da uniformidade de entendimentos”.
E ainda:
“esse conclave irá contribuir para o aprimoramento da prestação jurisdicional uma vez que as atividades de investigação são essenciais à produção de provas de autoria e materialidade do crime para compor o inquérito policial que, se bem instruído, evita o retardamento dos processos e, até mesmo, vícios que podem levar à nulidade das ações”.
Pois bem, apoiando-me nessas palavras do Ministro, chamo a atenção para uma situação que tem causado certo transtorno às atividades operacionais da Polícia. Refiro-me àquelas situações em que, sem prévio aviso, a Polícia recebe mandados judiciais para dar cumprimento, os quais foram pleiteados pelo Ministério Público. Quando digo sem prévio aviso quero dizer que em momento algum a polícia participou de qualquer levantamento, ou qualquer outro ato investigatório, que são realizados diretamente pelo MP ou em parceria com outros órgãos, ainda na fase inquisitiva.
Como é cediço, a persecução penal é formada por três órgãos distintos, dentre os quais não há hierarquia nem subordinação e cada um com sua missão específica: Polícia, Ministério Público e Justiça. Porém, aqui, infelizmente tem lugar o velho brocardo que diz que “na prática a teoria é outra”. Sim, porque o Ministério Público, que na teoria recebeu a importante missão de acusar, na prática, está querendo pegar para si também a função de investigar, que é por definição da polícia. E atente-se que já há notícia de que tem membro do parquet assinando peça denominada por ele mesmo de DECISÃO MINISTERIAL e não mais promoção ministerial como costumava ser. Registre-se que não são todos que assim procedem, mas aí pergunto: Até onde esse vai esse ímpeto do MP? Ouso responder: Vai até onde a Justiça permitir, sim porque a Justiça é quem dá a última palavra.
Infelizmente, temos que admitir que, na prática, atualmente no Brasil, há dois órgãos atuando como polícia judiciária: a Polícia e o Ministério Público. E é fato que tais órgãos, no exercício dessa atividade, encaminham suas demandas à Justiça. Ocorre que, quando o parquet atua como se polícia fosse, causa uma série de transtornos às atividades da verdadeira Polícia, pois, via de regra, a Justiça acaba deferindo os seus pleitos, sem ouvir a polícia.
E por que a Justiça deveria ouvir a polícia?
Porque, nesses casos, quase sempre, quando as ordens judiciais chegam à repartição policial, os policiais já estão empenhados em outras atividades investigativas (às vezes estão cumprindo mandados expedidos por outros juízes) que terão de ser sobrestadas para que se dê cumprimento à nova demanda judicial, ou a nova ordem é que tem que ser sobrestada até que sejam recrutados policiais especialmente capacitados para dedicarem-se ao cumprimento da medida. É fácil imaginar o transtorno que isso causa tanto à investigação em si quanto à gestão dos recursos públicos confiados ao órgão policial.
Registre-se ainda que, como os levantamentos que embasam os pedidos do parquet são feitos por servidores que não têm o treinamento adequado (visto que não são policiais) não é raro o caso de equívocos que vão acabar constando nos mandados judiciais. Isso sem contar que, às vezes, as estratégias escolhidas pelo parquet podem estar em total desacordo com a linha investigativa que a autoridade policial, na qualidade de legítimo presidente do Inquérito Policial, já vinha executando, causando, assim, sérios transtornos ao bom andamento das investigações.
Sem contar o desânimo que isso causa na equipe policial, já que, quem gosta de ser obrigado a fazer uma coisa sobre a qual não chegou sequer a opinar? E mais, quem faz algo com empenho quando, às vezes, sequer acredita que vá dar em algum resultado efetivo para a investigação?
Isso acontece porque alguns membros do MP, pelas suas próprias razões as quais eu não discuto, na fase inquisitorial, querem determinar as estratégias da investigação. Eles não se contentam em atuar nos estritos limites conferidos pela lei, ou seja, como requisitantes do Inquérito Policial e muito menos como fiscal da lei, que é o papel que cabe ao MP exercer nesse momento da persecução penal.
Às vezes fico me perguntando como seria se durante o processo a autoridade policial ficasse pleiteando ao juízo medidas cautelares, intrometendo-se nos rumos que o parquet quer dar à acusação?
Imaginemos a seguinte situação: Na fase em que a persecução penal já é processo, a autoridade policial, sem ter feito qualquer tipo de tratativa com o MP, representa ao juiz pleiteando uma medida cautelar em face do réu. É fácil saber que essa seria uma medida indeferida de plano, porque a autoridade policial não tem legitimidade para representar por medidas cautelares durante o processo – a sua legitimidade se restringe à fase pré-processual (fase do Inquérito Policial). E se o juiz resolvesse deferir o pleito policial? Muito facilmente o procedimento seria invalidado nos Tribunais. É fácil também imaginar o quão insatisfeito o membro do MP ficaria caso o juiz deferisse a medida e mais ainda se o fizesse sem ouvi-lo.
Ora, nos termos em que persecução penal brasileira foi concebida, na fase inquisitiva, o MP não deveria atuar como polícia, mas o faz constantemente e a Justiça, infelizmente, vem homologando essa atitude. O que a legislação confere ao MP nessa fase é a legitimidade para requisitar documentos e informações. E, se esses meios não forem suficientes para a formação da sua opnio delicti, sem investigação, pode o MP requisitar a instauração de Inquérito Policial, conforme disposto no Art. 26, I, “b”, II e IV, da Lei nº 8.625/93.
E o legislador quis que fosse assim, justamente, porque é a polícia que detém a missão constitucional, os equipamentos e o preparo profissional para investigar os fatos em tese criminosos, sendo este um direito do cidadão brasileiro, qual seja, a de ser investigado por um órgão do Estado constitucionalmente criado para essa finalidade, assim como o de ser acusado pelo MP, defendido pela Advocacia e de ser julgado pela Justiça.
Acredito que o sistema brasileiro de persecução penal, que prevê que a Polícia investiga, o Ministério Público acusa, o Advogado defende e o Juiz julga, está em perfeita sintonia com as exigências constitucionais de um Estado democrático de direito que tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, bem assim como objetivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Na estrutura constitucional cada órgão tem a sua característica peculiar que define a sua identidade.
Mas, quando um desses órgãos se arvora no direito de acumular funções (MP), o outro apenas se cala e cumpre cegamente (Polícia), e o outro homologa (Justiça) o comportamento do primeiro, há uma tendência de instalação da desarmonia no sistema, o que, infelizmente, se vê no atual momento, e é extremamente pernicioso para a atingimento eficaz dos fins para os quais os órgãos foram criados e são pesadamente mantidos pela sociedade.
Isso, em meu sentir, seria minimizado se a Justiça, na fase pré-processual, ao receber demandas diretas do MP por medidas cautelares, antes de decidir, ouvisse a Polícia, especialmente quando se tratasse de investigação que já está sendo conduzida em Inquérito Policial.
Seria algo como, o juiz recebe e autua o pedido do MP e em seguida despacha: “Vistas à Polícia”, com o objetivo de a autoridade policial dizer se já há Inquérito Policial em andamento apurando o fato; se está de acordo com a estratégia proposta pelo MP; e se, naquele momento, possui as condições materiais, financeiras e humanas necessárias ao cumprimento da ordem judicial que se seguirá, caso seja deferido o pleito do MP.
Isso decerto diminuiria em muito o impacto negativo que tem o fato de uma ordem judicial chegar às mãos da autoridade policial para cumprimento, contendo uma estratégia que mudará totalmente o rumo que já vinha sendo seguido no inquérito e que exigirá um esforço muito grande de pessoal especializado, que muitas das vezes tem que ser recrutado de outras unidades, redundando, inclusive, em impacto financeiro no orçamento da Polícia, com pagamento de passagens e diárias. E, no mínimo, essa atitude da Justiça serviria para prestigiar a polícia, que é quem, no final das contas, dá cumprimento às suas ordens.
Portanto, o momento é propício e devemos aproveitar o espaço aberto com o Primeiro Diálogo da Magistratura Federal e Polícia Federal para adotarmos medidas simples como a acima proposta que terá o condão de (re)instalar a harmonia e o entendimento entre os órgãos da persecução penal, visto que tenho certeza de que tanto a Polícia, quanto o MP e a Justiça, órgãos que merecem todo o nosso apreço e respeito, querem cumprir as suas missões constitucionais da melhor forma cada uma dentro da sua esfera de competências e atribuições.