Artigo: A autonomia das instituições

4 de maio de 2020 12:32

**Mário de Magalhães Papaterra Limongi

A saída do Ministro Sérgio Moro do governo trouxe à baila a questão da autonomia das instituições.

Como se recorda, o então ministro no dia 24 de abril, em entrevista  concedida no período da manhã, negou que tivesse exonerado o diretor geral da Polícia Federal, como constava do Diário Oficial, e, mais que isso, afirmou que o Presidente da República, por várias vezes, manifestou o desejo de troca para poder interferir nos trabalhos da polícia federal, em especial em investigações de seu interesse.

No final da tarde, com a companhia dos demais ministros, o Presidente da República deu sua versão para os fatos.

Destaco alguns pontos, colhidos da edição de 27 de abril da Folha de São Paulo, com a intenção de analisar a questão que intitula o presente artigo — a autonomia das instituições, em especial a Polícia Federal.

Sobre suas divergências com o Ministro, assim se expressou o Presidente:

“É um ministro lamentavelmente desarmamentista. Dificuldades enormes com decretos para facilitar e para os CACs ou para aqueles que têm uma arma a compra de armamento, de munição. Aquilo que eu defendi durante a campanha e pré-campanha os ministros têm obrigação de estar junto comigo”.

De fato, sendo o cargo de ministro de natureza política, sem entrar no mérito da crítica (pessoalmente, não vejo nenhum mal em ser contrário à facilitação do uso de arma de fogo), o Chefe do Executivo pode exonerar o ministro- cargo de confiança- em razão da discordância sobre ponto que, no seu entender, é relevante.

A exoneração do ministro e a sua motivação- divergências pontuais entre os dois agentes públicos- estão dentro das regras do jogo.

O mesmo raciocínio não se aplica ao chefe da Polícia Federal.

Não se nega que o Chefe do Executivo é a autoridade competente para nomear e exonerar o diretor geral da Polícia Federal, o que não significa que possa direcionar o seu trabalho.

Embora ao longo de seu pronunciamento, Bolsonaro tenha negado qualquer interferência, claramente demonstrou desconhecimento sobre as funções da Polícia Federal sem atinar para o fato de se tratar de instituição de estado e não de governo.

Após se queixar de atuações pontuais da Polícia Federal, seja no inquérito que investigou o atentado contra sua vida- “será que é interferir na Polícia Federal quase que exigir, implorar a Sérgio Moro, que apure quem mandou matar Jair Bolsonaro”-, seja na investigação do caso Marielle (de âmbito estadual, diga-se), Bolsonaro afirmou:

“Falei para ele: Moro, não tenho informações da Polícia Federal. Eu tenho que todo o dia ter um relatório do que aconteceu, em especial nas últimas 24 horas, para poder bem decidir o futuro dessa nação”.

Nas duas frases tiradas de seu pronunciamento, o Presidente demonstra que, em verdade, quer interferir na Polícia Federal.

O inquérito que apurou a tentativa de homicídio já se encerrou, foi relatado e encaminhado para o Ministério Público. A ação penal foi proposta e já há decisão judicial que transitou em julgado.

Evidente que o Presidente discorda da conclusão final do inquérito. Qualquer mudança, no entanto, além de ser juridicamente impossível, só seria admissível em caso de franca interferência nos trabalhos rotineiros da polícia federal.

De outro lado, o “relatório do que aconteceu”, a toda evidência não se coaduna com as atividades da polícia federal e muito menos constitui “um direito” do Presidente.

Em suma: se o Presidente pode e deve exonerar o Ministro da Justiça, por divergência na condução do ministério, não tem razão em pretender a troca do chefe da polícia federal por divergir das conclusões de um inquérito ou por falta de “relatório do que aconteceu, em especial nas últimas 24 horas”.

A Polícia Federal luta por sua autonomia e pretende que a escolha de seu chefe se dê em eleição interna ou, ao menos, com a elaboração de lista tríplice a ser submetida ao Chefe do Executivo.

A reivindicação pode até ser justa, mas é inegável que as possibilidades de sucesso são remotas.

Não é da nossa tradição que o Presidente da República renuncie ao direito de nomear. A cultura da caneta forte está consagrada no meio político.

Não é impossível, no entanto, que a almejada autonomia venha aos poucos. 

A exemplo do que ocorre com o Ministério Público Federal, seria da maior conveniência que o nomeado pelo Presidente tenha prazo determinado para exercer sua função sem que seja submetido a pressão indevida. O Diretor da Polícia Federal, assim, teria mandato, sem possibilidade de demissão. É um bom início.

Fica aqui a sugestão.

*Nota de esclarecimento: Diante da decisão do ministro Alexandre de Moraes, peço que fique esclarecido que o artigo foi redigido e encaminhado para publicação antes da referida decisão.

**Mário de Magalhães Papaterra Limongi é procurador de Justiça e diretor do Movimento do Ministério Público Democrático.

Artigo publicado originalmente no site Consultor Jurídico