Artigo: Autonomia das polícias judiciárias – uma necessidade urgente da sociedade brasileira
*Por Jorge Pontes
A leitura dos últimos acontecimentos no cenário político nacional nos dá a impressão de que os destinos da República são traçados numa delegacia de polícia judiciária. A expressão “polícia judiciária” faz referência tanto a uma unidade da polícia civil estadual, como da própria Polícia Federal. Essa última, em especial, já vem operando transformações e quebras de paradigmas no combate à delinquência institucionalizada, com forte protagonismo no enfrentamento da impunidade crônica que ocorre no nosso sistema processual penal.
Impende ressaltar que já se registram, da parte das polícias civis, a condução de inúmeras investigações e operações policiais de vulto, atingindo extratos superiores da criminalidade política.
O trabalho da polícia judiciária é eminentemente técnico e não admite quaisquer reparos ou interferências de natureza política. As polícias trabalham com a inarredável busca pela “verdade real” dos fatos investigados, matéria-prima e objeto do Direito Penal, que é o tema central de sua atividade fim. E para a preservação dessa “verdade real” só interessam conhecer sobre as operações polícias aqueles que nelas funcionam, a saber, juízes, promotores, delegados, peritos, agentes e escrivães.
A par desse tema, observamos, no mês de abril deste ano, uma crise política sem precedentes causada pela saída de Sergio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, em situação que apontaria para uma tentativa de interferência direta do presidente da República no comando da unidade da Polícia Federal no Rio de Janeiro. Coincidentemente, passados alguns dias da saída de Moro, o diretor-geral da Polícia Federal foi exonerado e, finalmente, a unidade da PF no Rio teve sua chefia trocada.
Percebemos também como a figura e a missão do delegado de polícia, tanto na função gerencial da unidade policial, como na condução de sofisticadas investigações, ganha proeminência e relevância no atual quadro político e econômico do país. Da mesma forma, o inquérito policial se firma como importante instrumento de enfrentamento da alta criminalidade.
Cabe aqui, voltando alguns anos no tempo, com o conhecimento geral do que veio à luz por intermédio da Operação Lava Jato, registrar o envolvimento da atividade política, e de setores dos próprios poderes da República, na construção do flagelo do crime sistêmico institucionalizado, que é o fenômeno da criminologia que se origina a partir de um pacto oligárquico celebrado entre parte da nossa classe política e setores do alto empresariado, com o suporte de quadrantes da burocracia estatal, levado a cabo pelos – e para – integrantes do governo, com o estamento público como plataforma, tendo a capacidade de sequestrar parte do Estado e comprometer seu desenvolvimento, colocando em risco a própria democracia.
Importante registrar que recorrentemente investigamos os chefes dos nossos chefes, aliás, aqueles que escolhem, nomeiam (e demitem) os nossos próprios chefes e, também, que liberam ou não as verbas para as nossas operações.
Por isso, a sociedade brasileira deve exigir urgentemente dos seus representantes no Congresso Nacional e nas respectivas assembleias legislativas, que elaborem e aprovem legislação específica concedendo autonomia para as polícias judiciárias (PF e polícias civis), com mandato de quatro anos – sem possibilidade de recondução – para os seus diretores-gerais. Cabendo aqui registrar a importância de que o início dos mandatos dos chefes de polícia, ocorram sempre na metade do termo do chefe do executivo, desvinculando a instituição policial da condição de órgão governamental.
A autonomia, portanto, se impõe. Temos que ter chefes de polícia com mandato, e a instituição com autonomia financeira e orçamentária. Isso nos blindaria de ameaças reais como as que vem ocorrendo nos últimos anos.
E, além de blindar a polícias judiciárias contra influências políticas deletérias, devemos pensar igualmente na proteção de seus quadros, de agentes e delegados. Para tal devem ser interrompidas, e proibidas por norma interna, as cessões de policiais para outros organismos estranhos às atividades de polícia judiciária e de segurança pública, com retorno imediato à corporação de todos os policiais cedidos ao Congresso Nacional, às assembleias legislativas, gabinetes de parlamentares e outras repartições que não guardam qualquer interesse para a missão constitucional das polícias judiciárias.
Cabe aqui reafirmarmos que no Brasil, hoje em dia, aceitar assessorar alguns políticos pode ser mais comprometedor e prejudicial para a reputação de um policial do que se associar a uma boca de fumo.
Por oportuno, seria igualmente fundamental, à exemplo das FFAA, vedar ao policial da ativa se candidatar a qualquer cargo eletivo. Não adiantaria conceder mandato ao diretor e autonomia para as polícias judiciárias se continuarmos com este tipo de situação, que cria policiais “anfíbios”, ora com acesso aos assuntos sensíveis do órgão, ora dentro do jogo “pragmático” do poder político.
O tema em questão tem que crescer nesse momento, e merece entrar com urgência no debate e na agenda do Congresso Nacional e das assembleias legislativas estatuais. Temos que blindar as instituições policiais, diminuir ao máximo as vulnerabilidades dos delegados e agentes e extinguir todas as formas possíveis de alpinismo funcional, tão prejudicial ao seu bom funcionamento.
Por derradeiro, quem ganhará com isso é sociedade brasileira, que terá polícias judiciárias ainda mais fortes e mais aptas a investigar esquemas envolvendo detentores de poder político e financeiro.
*Jorge B. Pontes, delegado de Polícia Federal, foi diretor da Interpol e é coautor do livro “Crime.Gov – quando corrupção e governo se misturam”
Publicado originalmente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e Analítica Comunicação